segunda-feira, 19 de outubro de 2009

QD

Caxias, 19 de Outubro de 2009
O Sacristão e o Maltrapilho

A VELHA TROUXE chá e biscoitos que tinha acabado de aprontar. Enquanto comíamos, Camilo falou aos velhos que dali a pouco iria pescar e me levaria junto; dito isso, o velho, com os olhos fitos em mim, não disse palavra, mas um sorriso pequeno e franco me dava a segunda ordem.
O primo caminhou pela casa uns instantes, enquanto eu deixei-me estar na sala de estar, aceso pela idéia de ir pra perto da mulher amada, de poder vê-la outra vez, linda e jovial como era, com a frescura expressada nas imaculadas maçãs do rosto, nos olhos lúcidos e ativos, na rigidez dos lábios, na cor de bronze da pele e no cheiro vivo de mulher.
Camilo sumiu pela casa e em poucos instantes apareceu trajado diferente do que se apresentou a mim, quando chegara: em vez de cores clássicas, as roupas tinham cores desbotadas; em vez de chapéu fino, um de palha, notavelmente velho, desgastado pelo uso excessivo; trouxe consigo os instrumentos de pesca, e agitou-se a me chamar, com entusiasmo pueril.

― Vamos, primo! Vamos! Vamos! Vamos! Vamos!
― Mas eu... Olha só você... Suas roupas... Eu vou sujar minhas roupas...
― Vamos! Vamos! Vamos!
― Antes eu vou trocar de roupas...
― Vamos! Vamos! Vamos! Disse ele puxando-me pelo braço, manifestando uma alegria que me deixou desorientado, não pude saber como reagir naquele momento. Camilo nem notou o meu embaraço, só me disse que não esperaria nem mais um minuto.

― Tem certeza que não quer a camionete pra ir até a praia, Camilo? Perguntou o velho, ―metendo o rosto na janela, ―quando meu primo e eu já andávamos pela rua. Camilo respondeu, com um gesto de cabeça que não faria uso do veículo e, voltando-se pra mim, disse que nada pagaria um passeio a pé até a praia, nem o conforto de um automóvel. Presumi, no meu universo privado e cheio de lacunas (a minha mente), que ele também tinha fortes motivos para fazer uma serena caminhada.
E foi assim que sai de casa nessa tarde: vestido como se fosse à missa e acompanhado por um maltrapilho. Embaraçado deveras, e não menos excitado.


CAPÍTULO 21
De volta a serena caminhada

ANDÁVAMOS a passos apressados. Eu fazia esforço para acompanhar o ritmo do primo, mas ele era energético por demais. Enquanto traçávamos o caminho, Camilo me ensinava mais coisas sobre as manhas de pesca. Nós já passávamos pela rua das casas de muros grandes, e ele de quando em quando me apontava uma casa e dizia o nome do respectivo dono. Falou-me também de alguns episódios da sua vida: o namoro com Luma, uma mulher mais velha; as brincadeiras do passado; a briga com um brutamontes, na qual venceu por causa da ajuda dos seus quatorze amigos... A cada lembrança, um suspiro e uma exclamação: “Que saudade desse lugar!”.
Foi assim que chegamos até as dunas.
Camilo, logo quando viu o mar, desceu correndo duna abaixo. Com habilidade, não deixava que os equipamentos de pesca caíssem dos ombros. Eu desci lentamente, cuidadoso, ouvindo os gritos do primo a me apressar. Ele já caminhava pela areia solada em direção ao mar; eu deixei-me ser lento, pois observava com atenção o cenário dos encontros com Monise, com muita excitação interna. Na praia, somente eu e o primo. Meu olhar era dividido entre a pedra em que sentei, na cabana ― ao longe ― onde tive com Monise por muito. Procurava rastros da sardenta, mas não a vi. Senti uma ponta de decepção ao ver o cenário em que vi pela primeira vez a moça por quem sentia febre, vazio como... Somente a natureza era presente, e nem rastro da moça. Deixei-me estar ao pé da duna, com os olhos no chão, olhando somente para a nuvem de areia que voava rasteiro por sobre o solo.


CAPÍTULO 22
Serena, mas triste

CAMINHEI em direção ao primo, que deixou as tralhas na areia e foi ter com o mar, imergindo soberano, furando as ondas com muito entusiasmo e nadando energeticamente. Eu sentei-me numa pedra e suportava com paciência a corrente de areia tocar minha pele com força. Camilo se retirou da água, despiu-se da camiseta encharcada, juntou os equipamentos, passou a mão pelos cabelos longos. ― Vamos, disse este, temos que alugar um barco.
Levantei-me sem dizer palavra, apenas concordei com um gesto de cabeça.
Camilo apontou para o lado onde seguiríamos a caminhar, era o lado oposto do encontro citado no capítulo anterior; fiz semblante de desagrado, mas não fora notável ao primo, pois este não movia os olhos pra coisas de tristeza, só mantinha o olhar resplandecente na visão de um paraíso. Eu, acompanhando os passos longos do primo, olhava, por sobre o ombro, de quando em quando, o cenário que ia ficando pra trás.
Deixei-me esquecer um pouco a história triste do desencontro, e me fiz atento ao cenário que se passava em meu novo passeio por um lugar desconhecido, deslumbrante. O sol ainda mantinha-se vivo e seus raios derramavam-se por sobre a minha fronte triste. O vento trazia consigo grãos de areia que tocava a minha pele e a minha roupa, mas nada que me fizesse continuar a caminhar sem que meu corpo reclamasse. Camilo, como em todo o caminho, falava-me de coisas da praia, das pescas, mas não me fiz atento, pois a voz dele se misturava com o sibilo do vento e o barulho das ondas, e o que chegava aos meus ouvidos eram ruídos.
E foi assim que chegamos a um ponto onde podíamos enxergar algumas pessoas e alguns barcos, enfileirados ao pé de uma doca velha.


CAPÍTULO 23
Um encontro festivo

Camilo, minuciosamente, analisava os barcos; tinha um olhar tão crítico quanto severo, enquanto dialogava com os respectivos proprietários. Demorou, mas finalmente escolheu um, branco com vermelho, suficientemente grande pra duas pessoas, ou três; era um barco velho, mas, segundo o primo, era o que mais suportava os movimentos bruscos do mar, devido a sua largura avantajada. Ao escolher, Camilo fez um gesto de mão pra mim que quase não notei, e eu, aluado e distante, o retribui imitando o gesto.
Enquanto Camilo preparava o barco com tamanha desenvoltura, eu, intimidado pelos movimentos lúcidos e rápidos dele, analisava o veículo com os olhos leigos, mas com empenho dissimulado, pra disfarçar a inaptidão.
Uma voz chamou por Camilo, não estava tão longe o dono dela; os olhos do meu primo encontraram o feitor do chamado e, sem demorar, abriu um sorriso tão afável quanto aos que cedera ao velho, quando na sua chegada. Logo os meus olhos também encontraram a quem chamou por Camilo: era um rapaz branco, da mesma altura de dele, só que mais forte; olhos caríssimos; cabelos arrepiados e brevemente loiros. O rapaz não tinha barba, a fronte era lisa, o que lhe dava um aspecto jovial; vestia farrapos (assim como Camilo); a juventude se fazia viva pela pele lisa que era bronzeada. Eles se olharam por um instante, cada um com um sorriso, e os dois corpos não demoraram pra se juntarem num abraço. Foi um encontro festivo por demais. Camilo chacoalhava a cabeça do rapaz que se ria enquanto era “afetuosamente malhado”. O rapaz deu sonoras tapinhas em Camilo. Estava eu ali, tímido, diante de uma cena típica de encontro de amigos que não se viam por tempo. Presumi com precisão o significado daquele afetuoso encontro: eram eles de fato amigos que não se viam por muito tempo, e no diálogo que fluiu depois da agitada recepção, revelaram-se amigos de infância. O primo me apresentou ao amigo. Este me apertou a mão e me disse o nome...


CAPÌTULO 24
A chispa do insulto

...apertou a mão e me disse o nome:
― Júlio.
― Leonel ― disse enquanto mantinha os olhos fitos numa cicatriz assombradora perto do olho do rapaz.
O rapaz correu os olhos pelos meus pés até a cabeça; analisou minas vestes; com um ar de escárnio e reprovação soltou: “Você veio a pesca ou a missa?”
Eu, externamente cordial e internamente injuriado, respondi-o, mas não disse palavra, só deixei que escapasse um sorriso diminuto na canto da boca. Segurei lá no interno da minha bílis, uma retruca que pudesse, à altura, dar continuidade a anedota infeliz e sem decoro do rapaz com marca de mutilação perto do olho direito, mas preferi sair-me indiscreto e com um tênue quê de apatia.
Camilo percebeu-me em indiferença e tratou de mudar de assunto: propôs que Júlio nos acompanhasse; este, sem titubear, aceitou o convite.
Foi assim que seguimos viagem rumo a alto mar.
Em poucos instantes já estávamos por demais afastados da costa e perto de uma ilhota, onde Camilo soltou a pouco que era o seu lugar favorito pra pescar ― era uma ilha pequenina, porém, bela. A areia branquíssima contrastava bruscamente com o verde vivo da vegetação e com o azul-escuro do mar; uma nuvem de albatrozes se transportava de um canto para outro com se se alegrassem com a nossa chegada. Eu, inativo e quieto, sentado na parte dianteira do barco, olhava com olhos fixos para a ilha, contemplando a sua beleza. Acompanhava com cuidado o balanço do barco, que, de vez em quando, em movimentos súbitos, causava-me sobressalto. Enquanto isso, Camilo e o amigo preparavam as parafernálias de pescar, ao mesmo tempo em que fluía um diálogo seguido de gargalhadas e gesticulações bruscas; divertiam-se a fazer balburdia e a golear o rum que trouxera Júlio, num cantil.


CAPÌTULO 25
A lenha do insulto

O primo chamou-me a atenção me dizendo que os meus equipamentos estavam prontos, e que eu poderia já iniciar a pesca. Eu assustado com a idéia de operar aquelas tralhas, disse a ele que me divertia em ficar só olhando, mas Camilo pediu-me que tentasse, e eu negava, negava, negava... Foi só pela insistência do pedido que resolvi tentar. O rapaz, ― que ainda ajustava os seus equipamentos, ― de quando em quando, olhava-nos por sobre um novelo que mantinha nas mão e perto do rosto, com um sorriso malicioso nos lábios: presumi que se divertia à custa da minha falta de habilidade.
Camilo deixou-me na dianteira do barco e foi ter com Júlio; bebeu um gole de rum e acendeu um cigarro; pôs-se na traseira do barco e deixou-se estar por lá, com o rosto pro céu, como se oferecesse o fumo que saia dos pulmões a um Altíssimo que lhe olhava ― era um ritual bizarro. Enquanto eu, lutando contra os equipamentos, com as minhas mãos inábeis, forcejando os movimentos para parecer empenhado, vi Júlio capturar três peixes grandes (do tamanho de uma caixa de sapatos) num intervalo de tempo pequeníssimo. Camilo juntou-se a Júlio e lá também capturou vários outros, enquanto eu via muitos comerem a isca do meu anzol sem sofrer qualquer tipo de ameaça ― fato este que fazia Júlio rir-se abusivamente.


CAPÍTULO 26
O insulto

Camilo e Júlio degustavam sem moderação ao rum, pois já estavam notavelmente alterados: cantavam e gargalhavam, mas não deixavam de exercer com excelência o trabalho de pescar ― fato que me fez ter idéia de desistir da tentativa.
Já havia passado muito tempo. O sol já fazia caminho rumo ao horizonte. Camilo e Júlio deram fim à pescaria e apenas bebiam, cantavam; enquanto eu deixei-me estar na dianteira do barco, alheio a balburdia da dupla de bêbados.
Vi Júlio se aproximar de mim, trôpego; fitou-me e questionou-me dessa forma:
― Por que tanta tristeza, jovenzinho? ― disse com a voz notavelmente alterada, mas com um ar de deboche mais “apurado” do que outrora. ― Já sei, não pegou nenhum peixe há-há-há-há.
Observava eu os movimentos retardados do rapaz debochado a minha frente, sentindo o sopro quente de puro rum. Depois de arrotar e soltar um riso pequeno, o crápula disse-me:
― Tem sorte, branquelinho, pois se um peixe se prendesse no teu anzol, era o mesmo que botar a perder um equipamento tão bom, pois suas mãos são tão frágeiszinhas... Olha só pros seus dedos magros! Olha! Acho que uma sardinha teria força suficiente pra te levar pro fundo do mar. E suas roupas, onde comprou as suas roupas... Há-há-há-há.
Camilo o interrompeu com um tapa nas costas, depois o recomendou procedimento, mas não demorou pra que caísse também em risada.
Eu permanecia no mesmo lugar enquanto fazíamos caminho de volta pra casa; tolerando impacientemente à algazarra dos bebidos; enraivecido pelo escárnio do tal Júlio. Permaneci calado, com a cólera que fluía dissolvida no meu sangue, que me esquentava energeticamente por dentro, mas eu era externamente sossegado.
Ao chegar à costa, os rapazes que bebiam ainda eram alegrados pelo álcool: cantavam, trombavam de vez em quando nos próprios pés, gargalhavam. Júlio, de quando em quando, chamando-me “burguesinho”, repetia a mesma pergunta, com ironia: “quantos peixes você capturou, padrezinho?” Eu, calado e sério, ignorava o bêbado e seguia caminho; Camilo, com olhos de peixe morto, mal podia carregar a um balde que pusera os peixes, caminhava e não se fazia atento as provocações do Júlio para comigo.
Caminhávamos e direção às dunas, já era noite e a escuridão era traiçoeira, senti-me alerta como na noite na cabana com Monise; foi quando eu, por descuido deixei que caíssem as tralhas de pesca dos meus ombros; um anzol enganchou-se na barra da minha calça. Logo Camilo se dispôs a me ajudar; enquanto trabalhávamos juntos, empenhados em retirar o anzol da calça, Júlio ria-se e me chamava “branquelinho desastrado, bonequinha de talco, olhinhos de Cinderela”...


CAPÍTULO 27
O descarrego do insulto

Eu estava agachado, num trabalho árduo que era desprender o anzol da minha calça. Vi Júlio se aproximar. Este, ao pé de mim, repetia todos os insultos citados no capitulo anterior, e como não o bastasse, além de insultos, resolveu apressar-me, aos gritos, obrigando-me a suportar algumas espevitadas gotas de saliva que voava da sua boca até pousar nas minhas vestes ou no meu rosto. Mas quando senti a mão dele tocar meu ombro, eu, em sobressalto, levantei-me e me pus frente a frente com o bêbado, e em segundos o vi jazido ali na areia fofa, ao pé da duna, desacordado e sangrando abundantemente por uma brecha que se abriu no lábio inferior: foi um golpe seco, um soco bem metido. Arrancara eu uma força que estava escondida lá nas cavernas da minha bílis; a minha mão frágil sofreu um tanto quanto o lábio do pobre pescador, pois também sangrava, não com abundância, mas, em contrapartida inchou deveras.
CAPÍTULO 28
Acorda, desgraçado! Vá, desgraçado!

― O que você fez, louco? Disse Camilo, olhando-me assombrosamente, segurando meus ombros e chacoalhando-me com força?
― O que eu deveria ter feito antes... ― respondi ainda com a cólera correndo pelo corpo.
Camilo foi ter com o Júlio, pôs-se de joelhos ao lado do corpo estendido na areia e logo lhe deu tapinhas leves no rosto, a fim de reanimar o bêbado.
― Acorda, desgraçado! Disse o primo ao corpo que não o respondia. E voltando-se a mim: ― Depressa, dê-me a sua camisa!
Eu, parado e mudo, sentia muita dor na mão que socara Júlio e sequer conseguia despir-me da camisa.
De súbito, Júlio abriu brevemente os olhos e moveu os braços. Camilo, aflito e desajeitado, o pôs sentado e lavava o lábio do rapaz com que sobrara do rum.
― Vá pro alto da duna e me espere lá antes que ele acorde por completo ― disse Camilo num tom imperativo. Eu continuei imóvel, como se não ouvisse a ordem do primo.
― Vá! Gritou, mas eu teimava em ficar.
― Vá, desgraçado! Trovejou o primo. Era a fúria em forma de saliva que entornava da boca.
Rapidamente deixei-os e fiz exatamente o que Camilo ordenou. Em poucos instantes eu estava sentado por sobre as areias, do alto da duna, olhando o cenário escuro e vazio.


CAPÌTULO 29
Serena, triste e violenta

“Ora, ora, ora.” ― Dizia eu em pensamentos. Refletia eu sobre dois feitos inusitados da minha vida: a pescaria e o soco. Eu que estava lá só no intuito de ver Monise. A frustração me desolava. Nesse momento, senti um aperto no coração, pois era mais um dia sem ver a sardenta, e mais paranóia invadia aminha cabeça, tinha receio de pensar o que ela pensava, se ela também sentia o mesmo aperto no coração que eu sentia, ou se simplesmente não dava crédito algum a minha ausência. A cabeça, de tanto pensar, rodava como a dos bêbados, eu já estava aflito por demais, deitei o corpo na areia fria e passeia a contemplar o céu. Demorava a minha espera elo primo que ficou cuidando do bêbado machucado lá em baixo.
Fitei a mão que dera soco, inchada, ainda sangrava, mas pouco; refleti: “O que foi mais violento, os insultos do Júlio ou o soco?” Nesse momento, senti uma ponta de arrependimento, senti-me minimizado por mim próprio, pois pudera usar somente as palavras pra livrar-me do quem me importunava, mas, depois de ter feito uma serena caminhada, embora triste, resolvi, precipitadamente, usar a violência a fim de descarregar-me do ódio que pulsavam os meus nervos. Deixei de meditar por um instante, distrai-me ao ver um mocho, ― cuja brancura era destacada no escuro da noite, ― voar por sobre a duna e em seguida sumir no horizonte. Foi só o mocho perder-se no escuro para eu voltar a meditar, e como de praxe, veio-me, linda e jovial, o rosto de Monise pairar sobre minha mente.
Foi Camilo que me “salvou” do meditar. Ele chegou sério, trazendo consigo o balde com peixes e as tralhas de pescar, economizou as palavras, me disse somente “vamos embora.”
Senti chegar a culpa quando caminhávamos em direção a casa, pois Camilo, ao sai de casa, mostrava-se amável e supinamente alegre; mas na volta, mostrou-se longe, uma seriedade e um silêncio que me embaraçava, tudo isso visível no semblante áspero que mantinha. Minha quietude se misturava com a dele, e, em todo o caminho, só ouvia o chaque-chaque que fazia o chinelo do Camilo. Foi assim que chegamos até a casa.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

QD (Dspeito amoroso)

São Luís, 09 de outubro de 2009

Despeito amoroso


CAMILO TIROU de uma mala, tralhas de pesca. Enquanto arrumava os anzóis e outras ferramentas, fazia questão de me dizer, com acendimento, o nome de cada uma e suas respectivas serventia. O velho veio ter na sala de novo, e viu os dois jovens entretidos numa aula informal de pescaria dada pelo sobrinho recém-chegado ao sobrinho “fujão”. Camilo, quando viu o velho ao pé de si, abriu um sorriso que vertia sinceridade; eu olhando aquela cena de pura afabilidade entre os parentes, também sorri, mas não exercia bem a arte de ser afável, sorri com tremendo esforço para parecer cordial. Talvez aquela cena patética me causasse embaraço; era brilhosa demais, ao ponto de não me fazer vidrar os olhos nos rostos demasiado alegres. “Demasiado alegres?” Ora, ai vem controvérsia, de novo: “Demasiado alegre” soa paradoxal. Existe alegria demasiada? Não é bom ter exorbitante alegria? Isto é, quanto mais alegria não é sempre melhor? Já ouvi esse disparate antes, foi dita pela minha mãe, quando numa briga com meu pai, e por ventura a usei nesse texto pra melhor disfarçar o meu despeito.

Numa briga, que era de praxe, minha mãe vociferava as verdades na cara do meu pai; este, adentrando trôpego em casa, ria-se, ria-se e ria-se, com uma garrafa pela metade de uísque e um copo vazio na mão. Meu pai, com a voz alterada pelo excesso de destilado na corrente sanguínea, falava: “― Você não diz sempre que quer ter paz nessa casa, mulher? Então, se eu estou rindo é porque tenho alegria, e quero compartilhá-la com você, meu amor! Há-há-há-há...”. Minha mãe trovejava xingos ao pé do ouvido do bêbado e depois se afastava dele explicando que aquela alegria vinha de fora de casa, que não era verdadeira, que era resultado das gradativas alterações da fisiologia... Ela dizia, aos prantos, todas as minúcias que ilustravam o efeito do álcool no organismo; e no final, já ajoelhada num canto do quarto, com as mãos cobrindo o rosto avermelhado e úmido, dizia ao meu pai, ou ao vento, ou aos móveis: “― Afaste-se de mim, demônio; e leva contigo essa alegria demasiada! Demasiada...”

O primo e o velho não estavam bêbados, é certo; era eu que estava com despeito. Como eu referi antes, usei essa expressão só pra melhor disfarçar de mim próprio o ciúme; mas tem outra coisa: eu também queria escarnecer o sentimento do moço para com o velho, mas consegui só ser um ciumento.

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