quarta-feira, 30 de setembro de 2009

QD

São Luís, não sei quanto de setembro de 2009

O primo Camilo

ERA POUCO MAIS DE TRÊS DA TARDE, a bruma sumira desde as onze da manhã, e o sol se apresentou, mas economizava calor. O clima era aprazível. Enquanto eu era distraído em leitura, próximo à janela da sala, notei uma aproximação que vinha do lado de fora; quando me voltei pro vulto que se fazia notável pelo barulho que produzia, a porta já estava se abrindo com o mesmo ranger de praxe. Não era visível a mim o que chegava, pois a porta me tapava a visão; mas era visível ao velho, numa poltrona mais distante. Foi tal vulto que arrancou a rabugem do rosto do ancião, colocou um sorriso afável e brilho nos olhos. O velho se levantou como um jovem e dirigiu-se até porta; de lá se ouvia lisonjas e mais lisonjas: umas partiam da voz arrastada e fraca do velho, e outras de uma voz nem muito grave, nem demasiada aguda, mas energética e cheia de sotaque. O velho fez companhia ao que chegava, e chamava a velha que estava preparando algo na cozinha. Vi, finalmente, o sujeito entrar: um rapaz de movimentos delicados; magro (não suficientemente caveiroso, mas nada que podia se chamar de atlético); o rosto fino, os cabelos cumpridos e o nariz afilado davam-lhe traços femininos, ― seria um rosto mulheril se não fosse à maxilar robusto e a barba por fazer (Eu disse a mim próprio, na mente, que era uma mulherzinha do nariz pra cima). Tinha boa aparência. Aparentava ele ter mais idade do que eu, pela altura e pela barba. Vestia uma roupa de cores clássicas, toda combinada perfeitamente com o chapéu marrom, que mantinha na mão pra fazer jus aos gestos de cortesia do velho. A velha chegou à sala com as mãos sujas de farinha de trigo, e se esquecera de tirar o avental pra receber o quem a visitava; abriu um sorriso grande quando viu o jovem, e encheu-lo de lisonjas, assim com o velho fizera. Eu deixei-me estar na mesma posição de quando lia. Observava aquela cena tocante com muita atenção. O jovem girou o corpo e encontrou-me no canto da sala, próximo a janela, sentado numa cadeira de balanço com um livro por sobre as pernas. Olhou-me com os olhos espremidos, ― como quem faz força pra enxergar.

― Venha cá, Leonel! Venha conhecer seu primo. ― disse o velho.

“Primo?” Cogitei na mente. Aquele ser de presença comemorada era parente. Procurava eu traços da família no rosto do jovem a minha frente e não descobri nenhum, nenhum. Apertamos as mãos e ele sorriu me dizendo o nome: ― Camilo.
Retribui o sorriso, mas com força tremenda, nem sei a dissimulação fora notável, só sei que os velhos olhavam os dois jovens com um sorriso de quem viu algo sagrado, talvez dois querubins iluminados. A tia voltou pra cozinha dizendo-nos que o chá não demoraria a ficar pronto, e fiquei em companhia do primo e do velho, na sala de estar.

― Como foi à viagem, Camilo? Perguntou o velho.
― Muito tranquila, tio; os ônibus continuam oferecendo conforto, os pinheiros continuam num verde incrivelmente bonito, e a estrada está muito boa. Não tenho o que reclamar. O velho disparou mais algumas perguntas que foram respondidas pelo jovem em palavras metricamente intervaladas. Depois de um tempo, quando viu que os jovens assuntavam coisas de jovem, o velho se retirou e disse que ia ter com a velha, na cozinha. O assunto entre mim e o meu primo fluía como se fossemos íntimos; agradou-me a desenvoltura do rapaz que me dirigia a palavra. Falava-me coisas da cidade onde mora, sobre a profissão, sobre pesca, sobre ser filho de um primo do meu pai, sobre mulheres, e sobre a uma festa que aconteceria no dia seguinte, motivo pelo qual veio à casa dos velhos. Falou-me que todos os anos, na transição do outono para o inverno, vinha só por causa dessa festa, pois morara nesta redondeza muito tempo, e era acostumado a ser presente todos os anos. Falou-me também que não se sentia cansado e que iria pescar, dali a pouco, que não via a hora de se meter no mar pra matar a saudade da sua terra e pra fazer o que mais gosta. Encheu-me de ânimo o primo; disse-me que me levaria junto e que me ensinaria as manhas de pescar, e iria pescar lá no mar, onde mora os meus pensamentos, ou o meu pensamento. Enquanto ele me falava dos lugares que iríamos, minha consciência me dizia que eu estava de castigo, mas eu era crente de que o velho não me ia fazer a desfeita de não me deixar fazer companhia ao estimado sobrinho dele, pois este tinha uma alegria tão sincera e bonita no rosto (que mais parecia uma criança quando no playground), que faria qualquer velho rabugento se tornar um anjo que toca lira e canta para acalentar criançinhas.
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Despeito Amoroso (no próximo)
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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

QD (PARTE NONA)

São Luís, 25 de Setembro de 2009


O castigo

O TIO ESTABELECEU UM CASTIGO para o “fujão” (assim ele me chamava depois do feito aborrecedor), um castigo pueril, coisa que eu nem sequer bradei, pois lavar louça, cuidar do jardim, dar comida a um papagaio, lavar a camionete e outros pormenores, não me faria sentir tédio, eu até gostei dos trabalhos, só não gostei de quando ele me falou “E tudo isso sem ir a passeios na praia, até segunda ordem!”. Ai, leitor, esqueça que eu disse que não sentiria tédio, pois sem praia... E até a segunda ordem, por qualquer tempo que fosse, era muito. Tempo suficiente para eu sentir triplicar a culpa que sentia, pois Monise, se eu bem entendi aquela voz doce ao pé do meu ouvido, estaria por lá a me esperar, enquanto eu cá atribulado a lavar louças, a cuidar do jardim, a dar comida a um papagaio...


Dito e feito

DITO E FEITO: a culpa me consumia. E era passado só um dia de castigo. Nada de segundo ordem. Eu deitei a cabeça no travesseiro e pedi perdão a sardentinha; dormi com um aperto no coração, e acordei com a saudade no rosto que eu olhava no espelho do banheiro. Não se passava um minuto sequer sem que eu cogitasse o que Monise estava fazendo, se me esquecera, se sentia raiva, decepção, saudade... E já no segundo dia estava farto da solidão. À chegada da tardinha era pra mim motivo de tristeza, pois lembrava a minha serena caminhada pelas dunas. Eu nada fazia além de observar pela janela os movimentos da casa do vizinho e ouvir as conversações. Deixava-me estar no vão da janela a descansar os braços cansados de fazer as tarefas domésticas. Meus olhos eram fixos nos vultos da casa do lado; a cabeça, nas dunas. Com a chegada da noite, ia eu ter com os velhos até à hora do jantar. Ceávamos. Eu deixava-me estar na sala, quando os velhos se retiravam pra dormir. Folheava algumas revistas, olhava a rua pela janela da sala, sentava-me na poltrona do velho e fazia jus à tristeza olhando para nada, só para a imagem que era fixa nos pensamentos. E era triste assim, que eu ia direto pra cama.



O terceiro dia

Vi, pela janela do quarto, ao alvorecer, chegar uma neblina rala, pouco parecida com a do dia do último encontro com Monise. Fazia frio. Deixei-me estar na cama a meditar, até chegar à hora em que costumava levantar. No café da manhã, em companhia dos velhos, não fluiu assunto por tempo; mantinha o pensamento longe. Os velhos, de súbito, deram início a uma prosa, que não me fiz de interesse, nem se quer fazia questão de escutar os ruídos, pois eram sempre os mesmos assuntos, até parecia encenado. Depois do café da manhã a velha abria um armário, tirava as tralhas de coser e ia direto pra sacada se sentar na cadeira de balanço; o velho ia até a caixa de correios, tirava de lá o que tivesse, voltava pra sentar na poltrona e preparava todo o ritual de acender o cachimbo. Enquanto eu, sentado ainda a mesa do café da manhã, com olhos de vidro, mirava a xícara de café fumegante; enquanto isso uma mão segurando o queixo e a outra brincando com o pão. As tarefas do castigo eram feitas muito depressa, e bem feitas (segundo a velha); logo depois do meio-dia eu estava livre pra fazer o que quisesse, menos ir até as dunas.

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O primo Camilo (no próximo)

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terça-feira, 22 de setembro de 2009

QD (cont) PARTE OITAVA

São Luís, 22 de setembro de 2009


O esporro

DO FIM DA RUA, onde estava o velho Valdir, dava pra ver a outra rua, a casa. Eu caminhava lentamente, pelo medo e pelo cansaço. Estava eu chegando à casa junto com uma dor na cabeça, que se espalhava pelos ombros, costelas, espinha, até latejar nas pernas; chegava também um resfriado (o nariz escorria e de quando em quando espirrava). Um fluído incógnito fluiu pelas veias, senti algo parecido com adrenalina, ao ver a casa com as luzes acesas. Mas ainda havia esperanças em mim; até o fim podia acreditar que os velhos não tomavam conhecimento da minha fuga; mas tudo desmoronou quando vi a tia velha na sacada, sentada na cadeira preguiçosa ― não pude notar se dormia. Tive uma súbita idéia de desviar o caminho e entrar pela janela por que fugira, mas ouvi rumores na sala de estar; uma silhueta magra e lenta aproximou-se da janela, colocou rosto fora, e os olhos trêmulos encontraram os meus num instante; sério e fixo e um desapontamento estampado nas rugas e na rabugem da idade. Disse-me “boa noite” com a voz bem entoada, firme; eu o respondi com um espirro, e depois outro. ― fato este que fez a velha acordar em sobressalto. A velha tinha um ar pacífico, brando; mas não falara palavra (tive receio, pois desconfiava que debaixo daquela placidez houvesse uma raiva febril). Adentrei junto cm a velha; o velho tio fazia caminho da janela até a poltrona; retomara a posição de costume: pernas cruzadas e cachimbo na mão. A atmosfera era pesada na sala de estar por causa do fumo espesso que flutuava; presumi que o velho fumava com demasia, quando atribulado. Deixei-me estar num canto da casa, a vista do velho, tremendo, espirrando e molhando o piso de madeira com a água que escorria da roupa molhada.
― Você tem noção do que fizeste, garoto?
Aquele “garoto” soou com desdém; senti-me destroçado, pois sem sombras de dúvidas tinha eu causado fúria no velho, notava-se pelo tom da voz e pelo modo de balançar a cabeça.
― Você prometeu falar com ele só amanhã, meu velho ― disse a velha ― olha só o estado do menino (o “menino” me fez sentir mais infantil do que o irmãozinho de Monise); deve trocar de roupa imediatamente. Olha só como molha o piso! Vá, vá, vá, meu filho!. Enquanto isso eu vou lhe preparar um chá. Veja como espirra! Sorte sua se não adoecer feio.
Eu não tinha cara pra meter em nenhum buraco de tanta vergonha, enquanto a velha caminhava lentamente e o clima pesava; tanto que não falei palavra, e omiti toda a dor que sentia naquele momento. Fez-se o silêncio mais aborrecedor da minha existência. Deslizei da sala para o banheiro olhando para o tio, que resmungava baixinho e olhava para um ponto fixo que não me fiz saber.


Quem na cozinha medita?

LI UMA VEZ em um clássico da literatura: “Só as grandes paixões são capazes de grandes ações”. Não sei se correr atrás de uma promessa insana pode se encaixar no que o autor intitula “grandes ações”. Ora, grandes ações, cuido eu, equivale a belas ações, bem-feitas ações, aquelas que abeiram o êxito a cada ocorrência, até chegar o soberano golpe final, o que bate martelo, o que fecha conta, o que eterniza o mérito. Não os que te rendem esporros, resfriados, dores musculares e te deixam na penumbra da cozinha tomando chá em companhia de uma velha de olhos secos e de um ar assombroso. Porventura, lembrei-me de uma proposição do mesmo autor: “Quem escapa a um perigo, ama a vida com outra intensidade”. Querendo ou não, parte da minha vida tinha sarda e nome: Monise.
Por mais que uma parte da minha lucidez repetisse incessantemente ao meu ouvido “Amor prematuro! Prematuro! Prematuro”, parte da minha ‘maluquês’, com a boca suja e a cara limpa, retrucava “prematuro é o ‘caralho’”.

― Quer mais chá, sobrinho? Disse à voz que surgiu da penumbra, ao mesmo tempo em que bocejava.
― Não... Não... Obrigado, tia. Quero mais é ir pra cama.
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O castigo (No proximo)
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domingo, 20 de setembro de 2009

Qase Delírio (Cont)

São Luís, dia que não lembro de outubro de 2009.
No caminho, surge um certo Sr. Valdir

CAMINHAVA A PASSOS LONGOS, os braços cruzados, cabeça baixa, completamente dado ao medo. Eu estava na metade do caminho até a casa, e as palavras do velho tio soavam de quando em quando no meu ouvido, como assombros. O rosto de Monise voltou a minha mente, não como a dona dos meus pensamentos, mas como culpada pelo meu tormento.
“― Ès tu mesmo, Monise, a culpada! És tu! Tu! Tu!”, ― dizia na mente.
Metade de mim sentia medo, a outra metade sentia raiva. Insano, culpava Monise pela situação desagradável que então eu estava só porque aquele rosto sardento e jovial me fizera ficar por horas longe de casa, longe dos cuidados dos velhos tios, perto de uma febre e perto de um esporro.
Eu já passava pelas ruas das casas de muros grandes, ― já mais próximo da casa dos tios do que da cabana ― senti certo alivio, pois lá tinha boa iluminação. Mas o medo ainda era presente, os passos ainda eram rápidos, eu ainda delirava em culpar a filhinha de pescadores, com certo desdém, como causadora de toda a aflição (Arrependi-me de fazer pouco-caso da moça e rapidamente e voltei a ser o apaixonado). Num ponto alto da agonia senti tremer os lábios e murchar os olhos, e sem forças pra segurar o choro, os olhos molharam-se-me junto com a chuva; uma lamúria serena (esquisito é chorar serenamente, quando atribulado). Ao choro caminhava eu por cima das calçadas, eu já estava quase no fim da rua, quando avistei um senhor, aconchegada no vão de uma porta de uma das casas, coberto por um manto sujo e apenas o rosto a mostra. Segurei o choro pra parecer firme, desacelerei os passos e me fiz cauto olhando fixamente os movimentos do velho, que ainda não tinha me visto. O velho, quando me viu, estendeu-me a mão e resmungou algo que não entendi; eu continuei a andar fito no vulto.
― Hei, garoto! ― chamou-me o velho.
Eu, tomado de receio, aturdido pelo susto que tomara ao ouvir a voz forte e grave do espectro que se escondia no vão da porta, parei e me pus frente a frente com o mendigo.
― Você tem relógio? ― Perguntou o vulto com a voz menos volumosa e demonstrando boa sombra com um sorriso no canto da boca.
Hunrrum... Sim... Sim... ― ainda assustado, trêmulo, puxei a manga da camisa e informei-lhe a hora e fiz menção de continuar a caminhada, mas o velho me chamou a atenção outra vez.
― Espere! ― Disse enquanto saia debaixo do manto ― Por que não espera a chuva passar? Assim você me faz companhia. Olhe só pra você. Não tem medo de adoecer, garoto?
O velho não me esperou responder; com um gesto de cortesia e um sorriso sereno, puxou-me pelo braço e me pôs junto de si, no vão da porta. Estava eu no mesmo espaço de um mendigo, dividindo a penumbra, o teto, e os pingos espevitados da chuva grossa. Disse ao velho que não podia ficar porque já estava encrencado por demais pra demorar mais alguns minutos; mas ele ignorou o que eu dizia e me interrompeu apertando-me a mão e dizendo o nome ― Valdir. Disse pausadamente e nem quis saber o meu, presumi. O velho de poucos cabelos parecia não notar a minha angustia, continuava falando. Tinha os olhos sujos de remela e parte do corpo a tremer; era magro. Os pés rachados tremendamente sujos; as pernas tão magras que mal podiam sustentar o tronco, que mal podia sustentar a caveira; tinha mais orelhas do que dente. Era notável a pobreza do homem maltrapilho, mas não tirava o sorriso do rosto. Falou-me coisas sobre a cidade, sobre a época quando jovem, das duas filhas que não via há décadas, da esposa que falecera no parto da segunda filha, sobre uma casa na praia que fora engolida pelo mar, sobre a pobre infância em outra cidade, e sobre mais meia dúzia de suas desventuras que não porei aqui neste texto pra não alongar a narração.
Eu deixei-me estar com o velho tempo suficiente para ele me contar a poesia triste da sua vida dele, e eu bocejar três ou quatro vezes. Presumi, depois de um ato do velho, que não me pareceu lúcido, que ele caducava: ele olhou certo tempo à chuva e com o dedo indicador seguia alguma coisa que voava (coisa que só ele enxergava) depois se calou, fechou os olhos e disse algumas palavras com as mãos dadas.
― Agora tenho que ir, Sr. Valdir ― Disse, e deslizei-me com agilidade para fora do vão onde estava. ― A chuva não é mais aquela de agora pouco, já posso ir andando tranquilamente.
― Mas você se vai assim? Nem me disse seu nome.
― Leonel.
― Bonito nome...
O velho persistia em alongar a prosa, mas eu o interrompi.
― Sr. Valdir, tenho que ir, não posso ficar aqui nem mais um minuto.
― Por quê?
― É... Porque... Ah, Senhor, eu já lhe contei sobre minha aflição e minha encrenca!
― Certo, garoto... Quer dizer... Qual o seu nome mesmo?
― Leonel.
― Sim, Leonel, você se vai e vai me deixar de mãos vazias? Dê-me um trocado.
Eu, sensibilizado com o pedido do velho mendigo, revirei as mãos pelo bolso e com dificuldades achei algumas moedas.
― Toma, Sr. Valdir; não é muito mais acho que dá pra comprar algo pra comer.
O velho analisou as moedas e colocou-as uma por uma dentro de uma cuia que mantinha ao pé de si. Fitou-me, torceu o nariz, levantou as sobrancelhas.
― Comida não, mas fumo.
― Fumo?
― Sim. Fumo. Com esses trocados dá pra encher três vezes o cachimbo.
― Deixa de comer pra fumar?
― Não. Claro que não. È que com dinheiro pouco, compro coisa pouca, e se não dá pra encher a barriga, encho os pulmões. Meu filho, a vida é cheia de “esquisitices”, sobretudo nas dos mendigos; quando não posso dar a alegria ao estômago, dou-a aos pulmões, mas nunca deixo de fazer alguém feliz.
O velho riu brevemente e me agradeceu.
Deram-se fim as minhas dúvidas; aqueles olhos não eram lúcidos, o velho caducava; nunca ouvi um provérbio mais atroz do que este.
O papo com o velho demorou o que a chuva acalmasse. Pus-me a caminhar; deixei o velho a se cobrir novamente com o manto sujo.
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O esporro (no proximo post)
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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Quase Delírio (PARTE SEXTA)

São Luís, 15 de stembro de 2009
À volta a casa


DESFIZEMO-NOS DO ABRAÇO, e ela se despediu também com os olhos: o olhar que as dunas novamente se me revelara. Monise e família se afastavam enquanto eu deixei-me estar ao pé da cabana, aturdido pelas palavras que acabara de ouvir; ora, antes ela ofegava, era muda e tinha olhos caídos de febre, mas na despedida se me mostrou uma inesperada malícia ― fato este que me fez distraído ao ponto de não notar a chuvinha que surgia. Olhava fixamente Monise sumindo na noite, e ela não me cedeu mais um olhar, um desejado último, um que não me rendesse dúvida, nenhum olhar. Sumiu por completo.
Eu estava em companhia da cabaninha, da noite, da chuvinha (então notável), da bruma ressurgida, e do medo.
Foi uma assombrosa caminhada até as dunas; a escuridão me escondia o perigo a pouca distância de mim, pois não podia eu enxergar dois metros a minha frente. A minha mente já era paranóica: via em galhos secos no chão, corpos humanos; via a névoa que tocava o chão formar espectros; os gritos dos mochos me causavam sobressalto. O chacoalho dos sapatos encharcados não me deixavam ser silencioso, e as pernas, de tanto forcejar os passos pesados na areia, aos gritos, queixavam-se-me de cansaço. Então, na subida a duna, a cabeça, que só servia pra formar a imagem do rosto da sardentinha na mente, dera aos pés todo o ofício de conduzir o corpo, e este, reclamando-se de dor, aos trancos, fazia todo o trabalho.
Uma parte do caminho já era feito; havia eu passado pelas dunas e já pisava em “terra firme”. A pouco já estava a ver a avenida, a ouvir os estalos dos pingos da chuvinha que se esborrachavam no asfalto. A chuvinha cessou subitamente, mas rapidamente dera lugar a um toró ― fato este que me fez acelerar os passos.
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No caminho, surge um certo Sr. Valdir (no próximo)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Qause Delírio (Parte Quinta)

Cont

DEMORAMOS NO MIRAR, face a face, muitíssimo próximos; ela com o olhar caído e eu a olhando fixamente nos olhos; já podia eu sentir o calor que ardia no rosto dela. Monise, por mais que ofegasse, por mais pressionada que estivesse não cedia palavra alguma sobre o olhar que se escondeu atrás das dunas, o segundo olhar, o que me rendeu dúvidas entre a confirmação ou o arrependimento. A moça, que já tremia um tanto quanto eu, fechou os olhos e os abriu com rapidez, e demoramos mais ainda nesse embaraço. Os lábios chegaram a se tocar muitíssimo brevemente, nada que podia ser considerado um beijo, nem quase beijo, nem beijo involuntário, nem beijo algum. Fato este que fez Monise, com um movimento arrebatado, separar-se de mim com um empurrão e um gemido fraco e breve (com força de mais pra uma menina). Dessa forma, separamo-nos e fiquei eu a ver o cenário do lado de dentro da cabaninha por um rombo da porta velha, na mesma posição onde estava a segurar a mão da sardentinha; esta caminhou até próximo ao banquinho (onde nós outrora sentávamos), aturdida pela situação embaraçosa, talvez estivesse sentindo medo, ou estava envergonhada, só sei que alguma coisa sentira. Monise cortou pela raiz a minha euforia, – fato que me fez voltar o tremendo frio, – e aumentara a minha dúvida. Monise finalmente falou-me:
― A chuva cessou, Leonel, você já pode ir.
Não a respondi, nem sequer me movi, só escutei com tremenda decepção as palavras da moça atormentada, como se tivesse visto o diabo ou qualquer outra coisa que lhe metesse medo. Voltei-me a moça; estava ela de costas pra mim, com as mãos cruzadas e com a capa de chuva por sobre os ombros. Nesta hora senti vontade de falar-lhe tudo o que ela me causou, desde a promessa até a febre; mas fora eu medroso o bastante para ficar mudo. A moça me olhou por sobre os ombros e voltou a falar-me:
― Acho melhor que parta logo, teimoso!
Fiquei embaraçado com o “teimoso”, pois soou imperativo de mais. Dei dois passos até perto dela, queria eu tomar explicação pra aquele tom de voz, mas fui distraído ao ver um vulto se aproximar, que me fez frear os passos e me sentir alerta. Monise voltou-se para o vulto e abriu um sorriso esquisito, parecia ela conhecer o espectro que surgiu da escuridão, um homem com uma cabeleira ruiva, que aparentava ter uns trinta e poucos anos, vestido numa calça jeans mais surrada que o macacão dela, pés descalços, despido da cintura pra cima e com tralhas de pesca por sobre os ombros, trazia na mão alguns peixes amarrados num cipó, e na outra uma faca grande. O homem tinha aparência séria, quase medonha, o semblante era áspero.
― Vejo que hoje está acompanhada, Monise. Quem é o seu amigo?
Monise titubeou. Disse meu nome com a voz fraca e parecia intimidada pela voz grave e forte do homem. Voltando-se a mim, Monise me apresentou o senhor:
― Leonel, este é meu pai.
Eu apertei a mão e disse “muito prazer”, pra demonstrar boa sombra e disfarçar o medo.
― Você pegou muita chuva, rapaz? O que faz você aqui a esta hora?
Demorei formular uma retruca para aquele duplo questionamento, e acabei falando o mesmo que falei a Monise, outrora. Estava eu muito encabulado. O homem tinha a cara de mau, mas era aparentemente bem-humorado. Enquanto o homem me repetia às palavras de alerta do meu velho tio, vi, por trás dele, surgir mais duas pessoas: uma mulher que aparentava ter a mesma faixa de idade do homem (presumi que fosse a sua esposa); tinha os traços de Monise e era sardenta do mesmo jeito; era uma versão gasta da sardentinha; trazia consigo um balde de metal cheio de lagostas. E um garotinho ruivo e branquelo; trazia consigo uma pequena caixinha de madeira (presumi que havia dentro adereços de pesca).
Monise antecipou-se e foi logo apresentando a sua mãe e seu irmãozinho, com o mesmo acanhamento que apresentou o seu pai (era uma família de pescadores! Exclamava eu em pensamentos). Estava eu ali diante da família da mulher por quem me apaixonei... (sim, sim, estimado leitor, eu já podia dizer que estava apaixonado). Era uma situação muitíssima embaraçosa e engraçada ao mesmo tempo. Todos me cumprimentaram cordialmente e me encabulei mais ainda. A mulher notara e rui-se dizendo que as maçãs do meu rosto estavam vermelhas de acanhamento (todos riram, até eu). Monise mirava-me sem piscar os olhos, rindo-se; eu só a mirava de quando em quando, pois assuntava com sua família. Depois de uma breve prosa, o pai de Monise, interrompendo a conversa, disse-me que era hora de partir; apertou-me a mão, ― gesto repetido pela esposa e pelo filhinho; ― Monise foi a última a se despedir, e, diferente dos outros, em vez de me apertar a mão, deu-me um abraço e disse baixinho ao pé do ouvido: “cuidado pelo caminho, eu não quero que lhe aconteça nada de mal antes que eu te fale o significado daquele segundo olhar.”




Relevem os "errinhos" e os "errões" deste texto, não o corrigi devidamente.


No próximo post: A VOLTA PRA CASA

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Quase Delírio (PARTE QUARTA)

São Luís, 01 de setembro de 2009


O CESSAR DA CHUVA MARCOU O INÍCIO DO ALERTA; a chuva parou, e estava se aproximando o momento de eu fazer o caminho de volta pra casa; minha mente estava em conflito moral ― Ora, só de imaginar a vergonha que sentiria ao chegar a casa, caso os velhos estivessem acordados. (Sabe-se lá se a polícia podia estar a minha procura ou coisa parecida). Seria eu o culpado por qualquer eventualidade desventurosa. Suportariam os velhos o baque de uma má notícia do sobrinho recém-chegado? Se fosse eu vítima de uma atrocidade qualquer? Pobres senis. Minha tia, velha reumática e cardíaca; meu tio velho, demasiado velho. A minha integridade física nunca fora colocada em tamanha evidência a mim quanto nesse momento... Não muito por minha preocupação, mas as dos tios. Lembrava-me, de quando em quando, com tremendo desconforto, das palavras do meu tio a me alertar. Preocupei-me verdadeiramente com a saúde dos anciões. Tardou a chegar por completo a minha lucidez, e chegara junto o medo... Nesse momento senti medo. Encontrava-me numa situação de guerra e paz nos meus pensamentos. A aflição era, porém, bloqueada por um alento maior e de difícil explicação... Devo dizer que com facilidade suportava aquela aflição que me causava a situação, pois estava ali, diante de mim, com o olhar vigilante e fixo, com postura supinamente séria: Monise; que revelara os cabelos longos que antes se escondia por baixo da capa de chuva, e olhava-me de quando em quando com olhos de leoa a vigiar o seu filhote: eu, um tamanho macho, ― trêmulo e inquieto ― exposto ao frio e ao relento. Confesso que me sentira menos macho nesse instante, pois estava eu tremendo debaixo das vestes úmidas enquanto a fêmea se comportava como líder do bando.
Tive com ela todo esse tempo; mas, envergonhado, não conseguia sequer falar; receava mostrar-lhe a minha voz fragilizada pelo tempo frio (bastava-lhe a roxidão dos lábios e o tremelique do corpo). Tinha vontade de perguntar sobre ela, mas a moça era séria e não mostrava interesse por diálogo. Monise pôs uma das mãos estendida para avaliar o nível da chuva, que de fato já havia terminado; olhou firmemente para a torrente formada ao pé da cabana, voltou-se pra mim e despindo-se da capa de chuva falou-me “Demorou a passar essa chuva” ela disse também outros pormenores sobre tempo e chuva enquanto eu permanecia sentado no baquinho velho. Por baixo da capa de chuva, Monise vestia um macacão jeans surrado com colarim dobrado até o meio das canelas e uma camisetinha branca por baixo; os cabelos avermelhados e lisos eram escorridos por sobre os ombros sardentos (sardentos como o rosto). Monise ― silenciosa e sombria ― se movia lentamente a minha frente. Minha contemplação já era notável a ela, pois ela curvava o seu olhar rapidamente a toda vez que encontrava o meu, que perseguia o dela. Monise sentou-se junto a mim no banquinho, pôs as mãos em descanso e cima das coxas e hesitando me perguntou.
―Você parecia concentrado ali próximo ao mar; o que fazia ali sozinho?
Revelar a resposta para essa pergunta era pra mim mais difícil do que tirar forças pra não tremer a voz. Como eu poderia falar ― assim de cara ― que estava eu lá por causa da promessa que fiz outrora a ela? Seria isso a centelha para um a série de revelações, pois teria que lhe falar do desconforto que senti na tardinha, da fuga, da febre... Tudo por causa da moça que se insinuava no olhar de outrora. Enquanto eu demorava a responder, Monise me olhava com um aspecto curioso (levantou as sobrancelhas e enrubesceu a testa como se estivesse esperando sem paciência). Mas, do fundo dos pulmões, surgiu uma resposta minha.
― Eu contemplava o panorama; estive aqui ontem, me encantei com o lugar e senti vontade de vir hoje. ― Com uma dúvida estampado no rosto, Monise voltou a me questionar.
― Não passou pela ta cabeça o frio e a tremedeira que ia sentir com essa chuva fria? Devo confessar-lhe que tu és corajoso, pois...
Interrompi-a dizendo:
― Foi uma promessa!
― Promessa?
―Sim, uma promessa. ― Observando com espanto o rosto de monise continuei ― Prometi que voltaria a visitar a natureza e os navios, e tratei essa promessa como uma dívida.
Mal podia saber o que se passava na cabeça da moça ao meu lado depois de tal revelação; eu só sei que na minha, ao omitir que a promessa fora também para ela, sentira uma enorme vergonha de mim próprio, senti-me menos macho do que eu era a pouco. Enquanto eu tremia vendo a moça séria, sentia um vazio maior que o desconforto da tardinha, e numa tentativa de atenuar esse cálice, tratei de mudar logo de assunto:
― Você me perguntou se eu não era daqui porque eu contemplava o mar sentado numa pedra, pois as pessoas desse local não mais fazem isso; mas e você; você demorou um tanto quanto eu a contemplação, e creio e que você é daqui, pois me alertou da periculosidade.
― Eu moro aqui desde que nasci, mas sempre contemplo esse lugar com os mesmos olhos de criança, diferente dos outros que se limitam ao trabalho.
Nessa hora Monise se levantou e se pôs no vão de uma porta velha e lá ficou parada olhando para um ponto que não me fiz perceber, eu só sei que me levantei com dificuldades (Permanecera eu muito tempo numa posição) me pus defronte a sardentinha, controlei-me para não tremer e fixei meus olhos atrevidos nos afugentados que era os dela. Como se vencida pelo cansaço, Monise fixou os olhos nos meus, demoramos no mirar até quando ela quebrou o silêncio falando-me sem tirar os olhos dos meus:
― O que tu queres ver com esse olhar bastante atrevido? (Atrevido! Atrevido! Ela é perita em leitura de olhares, presumi em pensamentos) Eu, num movimento muitíssimo rápido, olhei para a boca de lábios rosadinhos e cheios, e voltei para os olhos.
― Eu quero ver se de perto eu descubro o significado daquele olhar de ontem; aquele que se escondeu por trás das dunas.
Com efeito, depois de ter falado o que eu temia falar, senti-me descarregado da culpa e um alívio que, como uma onda de calor, me confortou de tal forma que poria aqui se soubesse distinguir e se não tivesse as mais ridículas comparações em mente... Enfim, voltemos à reação de monise: Os olhos voltaram a ser fugitivos, as mãos esconderam-se no bolso do macacão. Notara eu que a moça fora pega de surpresa. Permaneci na mesma posição sem mover os olhos para outro sentido. Passavam-se mil coisas pelos meus pensamentos, e uma era que, nessa altura, ela já sabia que além dos navios e da natureza, a promessa fora feita a ela também. Então, pra ela, muito de mim já se lhe revelara. Mas a resposta demorava e o tempo passava com velocidade. Monise finalmente voltou a me fitar, os lábios fizeram menção de se separarem para dar passagem à voz, mas a menina de macacão jeans hesitava. Eu a toquei na mão (forte e bronzeada, típico de quem mora na praia) com a minha (Branquíssima e consideravelmente frágil para um rapaz de dezenove anos) ela soltou um suspiro e quase falou alguma coisa, mas freou-se, e logo fugiu novamente o olhar. Eu, ainda “suficientemente” medroso e tímido, movia-me pra mais perto dela, mas só que numa velocidade diminuta, comparável a o ponteiro menor de um relógio, o que marca a hora. Demoramos nesse impasse que eu confesso que era bastante agradável a mim, pois eu já chegara num instante que eu podia sentir o cheiro de Monise; era um cheiro desconhecido pra mim, mas confesso que fora o melhor instante que estive com a sardentinha até então, pois a mistura de mulher e praia que adentrava agradabilississimamente as minhas narinas (podia eu chamar esse momento de delirante) fez-me esquecer por hora jasmim, lavanda, rosas, perfumes de francesinhas... Era um cheiro que não sabia eu nomear, mas era o mais deleitável que eu senti na vida. Monise voltou o rosto pro meu que já estava por de mais próximo ao dela; neste instante ela me olhava com os olhos caídos como se tivesse febre; eu segurei mais forte a sua mão (ela ofegava) e finalmente quebrei a falta de diálogo cobrando a resposta da minha pergunta, já com os narizes se tocando...

CONTINUA