quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

QD

CAPíTULO 30
O Crápula

Quando o relógio contava 08h13min, acordei e ainda me doía à memória do fato do dia anterior. Planava sobre a minha mente angustiada a idéia de como estivesse raivoso Camilo. Deixei-me estar um instante na cama, a meditar. Do meu lado havia uma cama desarrumada e algumas peças de roupa penduradas na cabeceira. Levantei-me e me trasladei até o banheiro ― suspeitando a presença de Camilo ― dei uma olhada, mas ninguém estava lá. Fui até a janela e meti o rosto fora; vi o dia ensolarado e bonito, poucas nuvens pairavam pelo céu, e o clima estava bom: nem muito quente, nem demasiado frio.
Andei pelo corredor e cheguei até a cozinha, que também não tinha ninguém; olhei o bule e a cesta pão sobre a mesa, acompanhados de uma mancha de café, migalhas de pão e um copo de água que fora abandonado sem que o bebesse. Fui até a sala de estar, e o silêncio muito se parecia com o quarto e a cozinha. Estava sozinho em casa e não entendi a ausência das pessoas. Fui até a janela e fiz uma brecha na veneziana, fitei os olhos na rua, girei o olhar e notei que ali não estava a camionete. Quando fui por os olhos na rua novamente me deparei com a chegada de Camilo e os velhos; este se mostrava alegre e aqueles estavam vestidos com roupas de sair e os semblantes se assemelhavam em meiguice. È. Camilo e os velhos se queriam muito, sem dúvidas. O ronco da camionete dirigida por Camilo era estridente. Por um tempo eu fiquei a observar o primo e os velhos descerem do carro, com muitas sacolas e sorrisos. Antes que eles entrassem, pus-me na cozinha, fingi tomar café e prestava a atenção na conversação ― queria ouvir se Camilo comentava o episódio do dia passado, mas só falavam de parentes e de datas. Camilo foi quem entrou primeiro na cozinha, fitou-me e mudou abruptamente o semblante alegre para um áspero e estranho, foi tal fato que me deixou mais angustiado. Não me cumprimentou, abriu a geladeira e tomou um copo de água. Tanto me incomodei com a indiferença do primo que procurava alguma coisa na memória pra falar-lhe, qualquer coisa, só pra poder testar a intensidade da raiva que sentia. Enfim, antes que ele deixasse a cozinha, perguntei-lhe se foram fazer compras, e ele me respondeu que sim com a cabeça, deu-me as costas e enveredou-se para a sala; segui-o e, enquanto eu caminhava, hesitava, pois não me vinha na mente outro assunto que pudesse falar-lhe. Falhou-me a criatividade. Fui travado pela angustia. Camilo posicionou-se frente ao espelho que tinha na sala, perto de um quadro antigo que tinha a pintura da velha e do velho, quando jovens, que parecia recepcionar a quem chegava a sala de estar... Permita-me, leitor paciente, eu fazer um breve traço da pintura, que se não fosse a minha demência de amontoar as coisas, merecia um capítulo especial, mas vai neste mesmo: Numa moldura esculpida, que dava a cara a velhice da fotografia, a rapariga de olhos espertos, metida num vestido branco e longo que escondia as suas formas, segurava uma rosa e tinha um sorriso perceptivelmente artificial, os cabelos feito um penteado da época, um que deixava todo o cabelo para cima, como um bolo; mostrava-se com um vigor de moça sadia ― não sei se também dissimulado como o sorriso. E o rapaz, vestido num paletó preto bem passado, uma gravata listrada que apertava o pescoço, talvez por descuido ou por gosto próprio, talvez até fosse este o motivo por que estava melindrado, com o rosto agressivo, como se fosse expressão de aborrecimento causado pelo enfado de pousar tantas horas seguidas para um pintor, que não deixou de ser honesto a obra mantendo a fisionomia original do rapaz. Sei que faziam um casal bonito, apesar da malícia metrificada de um, e do excesso de seriedade do outro ... Como eu narrava antes, Camilo estava frente ao espelho, e eu parei perto da janela da sala e ainda não sabia o que assuntar. Enquanto eu hesitava, Camilo contemplava-se no espelho, amarrou o cabelo, coisa que deixou seu rosto diferente, parecia ter esticado a pele, mas ele havia feito à barba, e isso ajudou. De súbito, e talvez infeliz, perguntei-lhe do Júlio, mas ele não disse nada, ficou se admirando, retocando o penteado, apertando o nó da fita que prendia o cabelo. Fiquei esperando uma resposta e não fiz menção de insistir, limitava-me em contorcer a consciência. Depois, quando eu não mais esperava, Camilo olhou-me sério, um semblante medonho, eu também o fitei; fiz um gesto com os ombros para demonstrar dúvida, e ele dirigiu-se até a mim e me puxou pelo braço até a sacada, sentou-se e me pediu que fizesse o mesmo. Ele demorou a falar-me, passou as mãos pelo rosto e olhou pra um ponto fixo, suspirou. Enfim disse-me sobre Júlio; falou-me que agi mal em agredir o seu amigo, e vários outros pormenores que não ponho aqui porque me recuso a eternizar os sermões que me dava como se fosse meu pai, tais que me importunam a memória até esse momento em que então agito os dedos a escrever. Ele continuava a me falar sobre bons procedimentos até que eu, no cimo da impaciência, o interrompi:
― Ele estava bêbado! ― falei em voz mais alta que a dele.
― Por isso mesmo, disse abrindo os braços.
― Mas ele me ofendia.
― Porque estava bêbado, ora!
― Mas ele não estava bêbado quando nos fomos apresentados.
― Não?
― Não!
― Mas ele...
― Mas ele que nada! ― interrompi-o ― Ele me ofendeu antes de ficar alterado. Ele bem que mereceu. A propósito, é desse tipo de gente que você cultiva amizade?
― Que tipo?
― Ora, que tipo! O tipo do Júlio?
― E que tipo é o Júlio?
― Ora, Camilo, não se faça de tonto, sabes muito bem que Júlio é um crápula. Você viu, sim, o que ele me ofendera. E bem que podia fazer alguma coisa. Afinal, eu que sou seu primo, não é?
― Crápula?
― Crápula, sim! Camilo, não me tire a paciência ― disse eu levantando veemente.
― Espere, Leonel! ― Camilo me segurou pelo braço e fitou-me por algum instante silencioso, apertou os lábios um contra o outro, enrubesceu a testa e pôs no rosto confuso um olhar que vertia pesar, tanto que na expressão interrogativa que lhe era acentuada pelas sobrancelhas levantadas e as demais parte do rosto, que formavam uma obra completa do que é o arrependimento, falou-me com ternura:
― Você está certo, Leonel. Conheço Júlio desde pequeno e ele sempre foi mesmo um crápula. Mas eu não rejeitava uma parceria pra poder beber, assim começamos a ficar próximos, mas sempre nossa parceria foi conturbada por situações como essa. Devo confessar-lhe que criei um esquisito laço com o debochado, e essa foi a primeira vez que alguém me deixou sem saber como defender-lo (...) era época de grana escassa (...)
Camilo me explicou várias coisas sobre Júlio, mais do que eu podia suportar ouvir sem dissimular enfado, mais até do que devia lhe me revelar, revelou-me muita coisa sobre o... esqueça crápula, agora Pescador Delinqüente: Júlio era, além de crápula, um malfeitor; divertia-se em fazer baderna e por várias ocasiões metera Camilo também caso de vandalismo e furto, segundo Camilo confessou-me.
Júlio, em dizer popular, não era flor que se cheira.
Depois da conversa na sacada Camilo já estava todo outro, já demonstrava boa sombra e conversou comigo na sala de estar até à hora do almoço. Falávamos coisas sobre a festa de logo à noite, sobre meninas... sobre muitas outras coisas que jovens costumam conversar.


CAPÍTULO 31
Luma

Vou fazer, sem muitas voltas, um breve comentário sobre o que Camilo me contou, então com mais detalhes, sobre um relacionamento passado com Luma, a mulher mais velha que referi antes no capítulo em que apresentei o primo. Mas só porque vi nele um ar de campeão, uma feição que partia da afabilidade ao mérito num pulo, parecia até que podia vê-la ali, tanto que os olhos se paralisaram num ponto onde estava o fantasma da doce mulher. Era uma viúva de um comerciante pobre, não tinha filho porque o falecido sofria de esterilidade. Alva, bonita e vigorosa; tinha boa forma física apesar das duras tarefas de uma vida conjugal conturbada e das tarefas diárias. Tinha olhos grandes e negos; lembro-me de ele ter exaltado os cabelos, cuja negrura era de dar brilho aos olhos do mais triste entre os homens na terra. Disse-me também que isso tudo sempre foi como uma grande aventura, pois a diferença de idade, além de dar brecha à má boca e aos olhos curvos do preconceito, era ele o felizardo a dividir as noites e a cama com Luma, o que era aspiração de uma boa quantidade de homens mais velhos, que o juravam de violência.
Amava-a, sem rastros de dúvidas. Tomando para esse texto um lugar-comum, tão comum quanto às desculpas do aleivoso a mulher sofrida da prisão que é a casa e a cama: “aquele olhar dizia o que a alma sentia.”
Paro por aqui, pois que descrever a alguém que nunca teve na minha vista é demais trabalhoso, e é também um trabalho importuno. È dar pernas atrevidas a mentira induzida, visto como não podia confiar se era verdade completa a descrição amável que me referiu Camilo; só o estado emocional dele me acendeu tal idéia.


CAPÍTULO 32
O Bloco de Notas

Conversamos por um longo tempo. Camilo me falou muito da festa: mencionou as gentes, as garotas, as vestes, os fogos, os comes e bebes...
A raiva que sentia o primo, presumi, havia terminado, como não se tivesse começado. Passei o resto da tarde lendo um velho romance de cavalaria enquanto Camilo cochilava na poltrona do velho.
Eram 17h00min quando Camilo me alertou que já devia estar pronto pra sair. Ele estava frente ao espelho secando os cabelos, vestido numa calça de estampas misturadas; estava nu da cintura pra cima.

― Vai! Vai! Vai! ― apressou-me.
― Um minuto só.

Dei um pulo do sofá e enveredei-me a caminho do banheiro. Disse-lhe que não me demorava. Não me demorei.
Quando sai do banho e cheguei próximo à porta do quarto, sem que Camilo me percebesse, vi-o sentado a escrivaninha, folheando um bloquinho de notas, um que eu anotava coisas diversas, coisas de tarefas diárias, notas do jornal, e o nome de Monise por diversas folhinhas, que repetia a escrever nos dias angustiantes em que a saudade da sardenta movia os meus pensamentos e os dedos que seguravam a caneta. Percebi-o analisando calmamente o bloco e pausando justo nas folhas que tinham o nome “Monise”. De súbito e de propósito entrei e disse em voz forte, ― com supino empenho pra disfarçar o embaraço, ― que a pouco estaria pronto. Camilo reagiu com um sobressalto, os olhos estufados. E, com atrapalhação, colocou o bloco de notas de volta junto à baixela. Eu, rapidamente, desajeitado também, peguei o bloco, quis fechá-lo, mas deixei que caísse. Foi Camilo que juntou, e eu o tomei de sua mão; rapidamente abri a gavetinha da escrivaninha, meti-o dentro e fechei.
Camilo ficou ainda sentado, fez um bico e enrubesceu a testa, pondo um ar de interrogação no rosto. Dei as costas a ele.

― É... Leonel... vou te esperar na sala ― gaguejou Camilo, levantou-se e num instante deixou o quarto.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

QD

Caxias, 19 de Outubro de 2009
O Sacristão e o Maltrapilho

A VELHA TROUXE chá e biscoitos que tinha acabado de aprontar. Enquanto comíamos, Camilo falou aos velhos que dali a pouco iria pescar e me levaria junto; dito isso, o velho, com os olhos fitos em mim, não disse palavra, mas um sorriso pequeno e franco me dava a segunda ordem.
O primo caminhou pela casa uns instantes, enquanto eu deixei-me estar na sala de estar, aceso pela idéia de ir pra perto da mulher amada, de poder vê-la outra vez, linda e jovial como era, com a frescura expressada nas imaculadas maçãs do rosto, nos olhos lúcidos e ativos, na rigidez dos lábios, na cor de bronze da pele e no cheiro vivo de mulher.
Camilo sumiu pela casa e em poucos instantes apareceu trajado diferente do que se apresentou a mim, quando chegara: em vez de cores clássicas, as roupas tinham cores desbotadas; em vez de chapéu fino, um de palha, notavelmente velho, desgastado pelo uso excessivo; trouxe consigo os instrumentos de pesca, e agitou-se a me chamar, com entusiasmo pueril.

― Vamos, primo! Vamos! Vamos! Vamos! Vamos!
― Mas eu... Olha só você... Suas roupas... Eu vou sujar minhas roupas...
― Vamos! Vamos! Vamos!
― Antes eu vou trocar de roupas...
― Vamos! Vamos! Vamos! Disse ele puxando-me pelo braço, manifestando uma alegria que me deixou desorientado, não pude saber como reagir naquele momento. Camilo nem notou o meu embaraço, só me disse que não esperaria nem mais um minuto.

― Tem certeza que não quer a camionete pra ir até a praia, Camilo? Perguntou o velho, ―metendo o rosto na janela, ―quando meu primo e eu já andávamos pela rua. Camilo respondeu, com um gesto de cabeça que não faria uso do veículo e, voltando-se pra mim, disse que nada pagaria um passeio a pé até a praia, nem o conforto de um automóvel. Presumi, no meu universo privado e cheio de lacunas (a minha mente), que ele também tinha fortes motivos para fazer uma serena caminhada.
E foi assim que sai de casa nessa tarde: vestido como se fosse à missa e acompanhado por um maltrapilho. Embaraçado deveras, e não menos excitado.


CAPÍTULO 21
De volta a serena caminhada

ANDÁVAMOS a passos apressados. Eu fazia esforço para acompanhar o ritmo do primo, mas ele era energético por demais. Enquanto traçávamos o caminho, Camilo me ensinava mais coisas sobre as manhas de pesca. Nós já passávamos pela rua das casas de muros grandes, e ele de quando em quando me apontava uma casa e dizia o nome do respectivo dono. Falou-me também de alguns episódios da sua vida: o namoro com Luma, uma mulher mais velha; as brincadeiras do passado; a briga com um brutamontes, na qual venceu por causa da ajuda dos seus quatorze amigos... A cada lembrança, um suspiro e uma exclamação: “Que saudade desse lugar!”.
Foi assim que chegamos até as dunas.
Camilo, logo quando viu o mar, desceu correndo duna abaixo. Com habilidade, não deixava que os equipamentos de pesca caíssem dos ombros. Eu desci lentamente, cuidadoso, ouvindo os gritos do primo a me apressar. Ele já caminhava pela areia solada em direção ao mar; eu deixei-me ser lento, pois observava com atenção o cenário dos encontros com Monise, com muita excitação interna. Na praia, somente eu e o primo. Meu olhar era dividido entre a pedra em que sentei, na cabana ― ao longe ― onde tive com Monise por muito. Procurava rastros da sardenta, mas não a vi. Senti uma ponta de decepção ao ver o cenário em que vi pela primeira vez a moça por quem sentia febre, vazio como... Somente a natureza era presente, e nem rastro da moça. Deixei-me estar ao pé da duna, com os olhos no chão, olhando somente para a nuvem de areia que voava rasteiro por sobre o solo.


CAPÍTULO 22
Serena, mas triste

CAMINHEI em direção ao primo, que deixou as tralhas na areia e foi ter com o mar, imergindo soberano, furando as ondas com muito entusiasmo e nadando energeticamente. Eu sentei-me numa pedra e suportava com paciência a corrente de areia tocar minha pele com força. Camilo se retirou da água, despiu-se da camiseta encharcada, juntou os equipamentos, passou a mão pelos cabelos longos. ― Vamos, disse este, temos que alugar um barco.
Levantei-me sem dizer palavra, apenas concordei com um gesto de cabeça.
Camilo apontou para o lado onde seguiríamos a caminhar, era o lado oposto do encontro citado no capítulo anterior; fiz semblante de desagrado, mas não fora notável ao primo, pois este não movia os olhos pra coisas de tristeza, só mantinha o olhar resplandecente na visão de um paraíso. Eu, acompanhando os passos longos do primo, olhava, por sobre o ombro, de quando em quando, o cenário que ia ficando pra trás.
Deixei-me esquecer um pouco a história triste do desencontro, e me fiz atento ao cenário que se passava em meu novo passeio por um lugar desconhecido, deslumbrante. O sol ainda mantinha-se vivo e seus raios derramavam-se por sobre a minha fronte triste. O vento trazia consigo grãos de areia que tocava a minha pele e a minha roupa, mas nada que me fizesse continuar a caminhar sem que meu corpo reclamasse. Camilo, como em todo o caminho, falava-me de coisas da praia, das pescas, mas não me fiz atento, pois a voz dele se misturava com o sibilo do vento e o barulho das ondas, e o que chegava aos meus ouvidos eram ruídos.
E foi assim que chegamos a um ponto onde podíamos enxergar algumas pessoas e alguns barcos, enfileirados ao pé de uma doca velha.


CAPÍTULO 23
Um encontro festivo

Camilo, minuciosamente, analisava os barcos; tinha um olhar tão crítico quanto severo, enquanto dialogava com os respectivos proprietários. Demorou, mas finalmente escolheu um, branco com vermelho, suficientemente grande pra duas pessoas, ou três; era um barco velho, mas, segundo o primo, era o que mais suportava os movimentos bruscos do mar, devido a sua largura avantajada. Ao escolher, Camilo fez um gesto de mão pra mim que quase não notei, e eu, aluado e distante, o retribui imitando o gesto.
Enquanto Camilo preparava o barco com tamanha desenvoltura, eu, intimidado pelos movimentos lúcidos e rápidos dele, analisava o veículo com os olhos leigos, mas com empenho dissimulado, pra disfarçar a inaptidão.
Uma voz chamou por Camilo, não estava tão longe o dono dela; os olhos do meu primo encontraram o feitor do chamado e, sem demorar, abriu um sorriso tão afável quanto aos que cedera ao velho, quando na sua chegada. Logo os meus olhos também encontraram a quem chamou por Camilo: era um rapaz branco, da mesma altura de dele, só que mais forte; olhos caríssimos; cabelos arrepiados e brevemente loiros. O rapaz não tinha barba, a fronte era lisa, o que lhe dava um aspecto jovial; vestia farrapos (assim como Camilo); a juventude se fazia viva pela pele lisa que era bronzeada. Eles se olharam por um instante, cada um com um sorriso, e os dois corpos não demoraram pra se juntarem num abraço. Foi um encontro festivo por demais. Camilo chacoalhava a cabeça do rapaz que se ria enquanto era “afetuosamente malhado”. O rapaz deu sonoras tapinhas em Camilo. Estava eu ali, tímido, diante de uma cena típica de encontro de amigos que não se viam por tempo. Presumi com precisão o significado daquele afetuoso encontro: eram eles de fato amigos que não se viam por muito tempo, e no diálogo que fluiu depois da agitada recepção, revelaram-se amigos de infância. O primo me apresentou ao amigo. Este me apertou a mão e me disse o nome...


CAPÌTULO 24
A chispa do insulto

...apertou a mão e me disse o nome:
― Júlio.
― Leonel ― disse enquanto mantinha os olhos fitos numa cicatriz assombradora perto do olho do rapaz.
O rapaz correu os olhos pelos meus pés até a cabeça; analisou minas vestes; com um ar de escárnio e reprovação soltou: “Você veio a pesca ou a missa?”
Eu, externamente cordial e internamente injuriado, respondi-o, mas não disse palavra, só deixei que escapasse um sorriso diminuto na canto da boca. Segurei lá no interno da minha bílis, uma retruca que pudesse, à altura, dar continuidade a anedota infeliz e sem decoro do rapaz com marca de mutilação perto do olho direito, mas preferi sair-me indiscreto e com um tênue quê de apatia.
Camilo percebeu-me em indiferença e tratou de mudar de assunto: propôs que Júlio nos acompanhasse; este, sem titubear, aceitou o convite.
Foi assim que seguimos viagem rumo a alto mar.
Em poucos instantes já estávamos por demais afastados da costa e perto de uma ilhota, onde Camilo soltou a pouco que era o seu lugar favorito pra pescar ― era uma ilha pequenina, porém, bela. A areia branquíssima contrastava bruscamente com o verde vivo da vegetação e com o azul-escuro do mar; uma nuvem de albatrozes se transportava de um canto para outro com se se alegrassem com a nossa chegada. Eu, inativo e quieto, sentado na parte dianteira do barco, olhava com olhos fixos para a ilha, contemplando a sua beleza. Acompanhava com cuidado o balanço do barco, que, de vez em quando, em movimentos súbitos, causava-me sobressalto. Enquanto isso, Camilo e o amigo preparavam as parafernálias de pescar, ao mesmo tempo em que fluía um diálogo seguido de gargalhadas e gesticulações bruscas; divertiam-se a fazer balburdia e a golear o rum que trouxera Júlio, num cantil.


CAPÌTULO 25
A lenha do insulto

O primo chamou-me a atenção me dizendo que os meus equipamentos estavam prontos, e que eu poderia já iniciar a pesca. Eu assustado com a idéia de operar aquelas tralhas, disse a ele que me divertia em ficar só olhando, mas Camilo pediu-me que tentasse, e eu negava, negava, negava... Foi só pela insistência do pedido que resolvi tentar. O rapaz, ― que ainda ajustava os seus equipamentos, ― de quando em quando, olhava-nos por sobre um novelo que mantinha nas mão e perto do rosto, com um sorriso malicioso nos lábios: presumi que se divertia à custa da minha falta de habilidade.
Camilo deixou-me na dianteira do barco e foi ter com Júlio; bebeu um gole de rum e acendeu um cigarro; pôs-se na traseira do barco e deixou-se estar por lá, com o rosto pro céu, como se oferecesse o fumo que saia dos pulmões a um Altíssimo que lhe olhava ― era um ritual bizarro. Enquanto eu, lutando contra os equipamentos, com as minhas mãos inábeis, forcejando os movimentos para parecer empenhado, vi Júlio capturar três peixes grandes (do tamanho de uma caixa de sapatos) num intervalo de tempo pequeníssimo. Camilo juntou-se a Júlio e lá também capturou vários outros, enquanto eu via muitos comerem a isca do meu anzol sem sofrer qualquer tipo de ameaça ― fato este que fazia Júlio rir-se abusivamente.


CAPÍTULO 26
O insulto

Camilo e Júlio degustavam sem moderação ao rum, pois já estavam notavelmente alterados: cantavam e gargalhavam, mas não deixavam de exercer com excelência o trabalho de pescar ― fato que me fez ter idéia de desistir da tentativa.
Já havia passado muito tempo. O sol já fazia caminho rumo ao horizonte. Camilo e Júlio deram fim à pescaria e apenas bebiam, cantavam; enquanto eu deixei-me estar na dianteira do barco, alheio a balburdia da dupla de bêbados.
Vi Júlio se aproximar de mim, trôpego; fitou-me e questionou-me dessa forma:
― Por que tanta tristeza, jovenzinho? ― disse com a voz notavelmente alterada, mas com um ar de deboche mais “apurado” do que outrora. ― Já sei, não pegou nenhum peixe há-há-há-há.
Observava eu os movimentos retardados do rapaz debochado a minha frente, sentindo o sopro quente de puro rum. Depois de arrotar e soltar um riso pequeno, o crápula disse-me:
― Tem sorte, branquelinho, pois se um peixe se prendesse no teu anzol, era o mesmo que botar a perder um equipamento tão bom, pois suas mãos são tão frágeiszinhas... Olha só pros seus dedos magros! Olha! Acho que uma sardinha teria força suficiente pra te levar pro fundo do mar. E suas roupas, onde comprou as suas roupas... Há-há-há-há.
Camilo o interrompeu com um tapa nas costas, depois o recomendou procedimento, mas não demorou pra que caísse também em risada.
Eu permanecia no mesmo lugar enquanto fazíamos caminho de volta pra casa; tolerando impacientemente à algazarra dos bebidos; enraivecido pelo escárnio do tal Júlio. Permaneci calado, com a cólera que fluía dissolvida no meu sangue, que me esquentava energeticamente por dentro, mas eu era externamente sossegado.
Ao chegar à costa, os rapazes que bebiam ainda eram alegrados pelo álcool: cantavam, trombavam de vez em quando nos próprios pés, gargalhavam. Júlio, de quando em quando, chamando-me “burguesinho”, repetia a mesma pergunta, com ironia: “quantos peixes você capturou, padrezinho?” Eu, calado e sério, ignorava o bêbado e seguia caminho; Camilo, com olhos de peixe morto, mal podia carregar a um balde que pusera os peixes, caminhava e não se fazia atento as provocações do Júlio para comigo.
Caminhávamos e direção às dunas, já era noite e a escuridão era traiçoeira, senti-me alerta como na noite na cabana com Monise; foi quando eu, por descuido deixei que caíssem as tralhas de pesca dos meus ombros; um anzol enganchou-se na barra da minha calça. Logo Camilo se dispôs a me ajudar; enquanto trabalhávamos juntos, empenhados em retirar o anzol da calça, Júlio ria-se e me chamava “branquelinho desastrado, bonequinha de talco, olhinhos de Cinderela”...


CAPÍTULO 27
O descarrego do insulto

Eu estava agachado, num trabalho árduo que era desprender o anzol da minha calça. Vi Júlio se aproximar. Este, ao pé de mim, repetia todos os insultos citados no capitulo anterior, e como não o bastasse, além de insultos, resolveu apressar-me, aos gritos, obrigando-me a suportar algumas espevitadas gotas de saliva que voava da sua boca até pousar nas minhas vestes ou no meu rosto. Mas quando senti a mão dele tocar meu ombro, eu, em sobressalto, levantei-me e me pus frente a frente com o bêbado, e em segundos o vi jazido ali na areia fofa, ao pé da duna, desacordado e sangrando abundantemente por uma brecha que se abriu no lábio inferior: foi um golpe seco, um soco bem metido. Arrancara eu uma força que estava escondida lá nas cavernas da minha bílis; a minha mão frágil sofreu um tanto quanto o lábio do pobre pescador, pois também sangrava, não com abundância, mas, em contrapartida inchou deveras.
CAPÍTULO 28
Acorda, desgraçado! Vá, desgraçado!

― O que você fez, louco? Disse Camilo, olhando-me assombrosamente, segurando meus ombros e chacoalhando-me com força?
― O que eu deveria ter feito antes... ― respondi ainda com a cólera correndo pelo corpo.
Camilo foi ter com o Júlio, pôs-se de joelhos ao lado do corpo estendido na areia e logo lhe deu tapinhas leves no rosto, a fim de reanimar o bêbado.
― Acorda, desgraçado! Disse o primo ao corpo que não o respondia. E voltando-se a mim: ― Depressa, dê-me a sua camisa!
Eu, parado e mudo, sentia muita dor na mão que socara Júlio e sequer conseguia despir-me da camisa.
De súbito, Júlio abriu brevemente os olhos e moveu os braços. Camilo, aflito e desajeitado, o pôs sentado e lavava o lábio do rapaz com que sobrara do rum.
― Vá pro alto da duna e me espere lá antes que ele acorde por completo ― disse Camilo num tom imperativo. Eu continuei imóvel, como se não ouvisse a ordem do primo.
― Vá! Gritou, mas eu teimava em ficar.
― Vá, desgraçado! Trovejou o primo. Era a fúria em forma de saliva que entornava da boca.
Rapidamente deixei-os e fiz exatamente o que Camilo ordenou. Em poucos instantes eu estava sentado por sobre as areias, do alto da duna, olhando o cenário escuro e vazio.


CAPÌTULO 29
Serena, triste e violenta

“Ora, ora, ora.” ― Dizia eu em pensamentos. Refletia eu sobre dois feitos inusitados da minha vida: a pescaria e o soco. Eu que estava lá só no intuito de ver Monise. A frustração me desolava. Nesse momento, senti um aperto no coração, pois era mais um dia sem ver a sardenta, e mais paranóia invadia aminha cabeça, tinha receio de pensar o que ela pensava, se ela também sentia o mesmo aperto no coração que eu sentia, ou se simplesmente não dava crédito algum a minha ausência. A cabeça, de tanto pensar, rodava como a dos bêbados, eu já estava aflito por demais, deitei o corpo na areia fria e passeia a contemplar o céu. Demorava a minha espera elo primo que ficou cuidando do bêbado machucado lá em baixo.
Fitei a mão que dera soco, inchada, ainda sangrava, mas pouco; refleti: “O que foi mais violento, os insultos do Júlio ou o soco?” Nesse momento, senti uma ponta de arrependimento, senti-me minimizado por mim próprio, pois pudera usar somente as palavras pra livrar-me do quem me importunava, mas, depois de ter feito uma serena caminhada, embora triste, resolvi, precipitadamente, usar a violência a fim de descarregar-me do ódio que pulsavam os meus nervos. Deixei de meditar por um instante, distrai-me ao ver um mocho, ― cuja brancura era destacada no escuro da noite, ― voar por sobre a duna e em seguida sumir no horizonte. Foi só o mocho perder-se no escuro para eu voltar a meditar, e como de praxe, veio-me, linda e jovial, o rosto de Monise pairar sobre minha mente.
Foi Camilo que me “salvou” do meditar. Ele chegou sério, trazendo consigo o balde com peixes e as tralhas de pescar, economizou as palavras, me disse somente “vamos embora.”
Senti chegar a culpa quando caminhávamos em direção a casa, pois Camilo, ao sai de casa, mostrava-se amável e supinamente alegre; mas na volta, mostrou-se longe, uma seriedade e um silêncio que me embaraçava, tudo isso visível no semblante áspero que mantinha. Minha quietude se misturava com a dele, e, em todo o caminho, só ouvia o chaque-chaque que fazia o chinelo do Camilo. Foi assim que chegamos até a casa.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

QD (Dspeito amoroso)

São Luís, 09 de outubro de 2009

Despeito amoroso


CAMILO TIROU de uma mala, tralhas de pesca. Enquanto arrumava os anzóis e outras ferramentas, fazia questão de me dizer, com acendimento, o nome de cada uma e suas respectivas serventia. O velho veio ter na sala de novo, e viu os dois jovens entretidos numa aula informal de pescaria dada pelo sobrinho recém-chegado ao sobrinho “fujão”. Camilo, quando viu o velho ao pé de si, abriu um sorriso que vertia sinceridade; eu olhando aquela cena de pura afabilidade entre os parentes, também sorri, mas não exercia bem a arte de ser afável, sorri com tremendo esforço para parecer cordial. Talvez aquela cena patética me causasse embaraço; era brilhosa demais, ao ponto de não me fazer vidrar os olhos nos rostos demasiado alegres. “Demasiado alegres?” Ora, ai vem controvérsia, de novo: “Demasiado alegre” soa paradoxal. Existe alegria demasiada? Não é bom ter exorbitante alegria? Isto é, quanto mais alegria não é sempre melhor? Já ouvi esse disparate antes, foi dita pela minha mãe, quando numa briga com meu pai, e por ventura a usei nesse texto pra melhor disfarçar o meu despeito.

Numa briga, que era de praxe, minha mãe vociferava as verdades na cara do meu pai; este, adentrando trôpego em casa, ria-se, ria-se e ria-se, com uma garrafa pela metade de uísque e um copo vazio na mão. Meu pai, com a voz alterada pelo excesso de destilado na corrente sanguínea, falava: “― Você não diz sempre que quer ter paz nessa casa, mulher? Então, se eu estou rindo é porque tenho alegria, e quero compartilhá-la com você, meu amor! Há-há-há-há...”. Minha mãe trovejava xingos ao pé do ouvido do bêbado e depois se afastava dele explicando que aquela alegria vinha de fora de casa, que não era verdadeira, que era resultado das gradativas alterações da fisiologia... Ela dizia, aos prantos, todas as minúcias que ilustravam o efeito do álcool no organismo; e no final, já ajoelhada num canto do quarto, com as mãos cobrindo o rosto avermelhado e úmido, dizia ao meu pai, ou ao vento, ou aos móveis: “― Afaste-se de mim, demônio; e leva contigo essa alegria demasiada! Demasiada...”

O primo e o velho não estavam bêbados, é certo; era eu que estava com despeito. Como eu referi antes, usei essa expressão só pra melhor disfarçar de mim próprio o ciúme; mas tem outra coisa: eu também queria escarnecer o sentimento do moço para com o velho, mas consegui só ser um ciumento.

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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

QD

São Luís, não sei quanto de setembro de 2009

O primo Camilo

ERA POUCO MAIS DE TRÊS DA TARDE, a bruma sumira desde as onze da manhã, e o sol se apresentou, mas economizava calor. O clima era aprazível. Enquanto eu era distraído em leitura, próximo à janela da sala, notei uma aproximação que vinha do lado de fora; quando me voltei pro vulto que se fazia notável pelo barulho que produzia, a porta já estava se abrindo com o mesmo ranger de praxe. Não era visível a mim o que chegava, pois a porta me tapava a visão; mas era visível ao velho, numa poltrona mais distante. Foi tal vulto que arrancou a rabugem do rosto do ancião, colocou um sorriso afável e brilho nos olhos. O velho se levantou como um jovem e dirigiu-se até porta; de lá se ouvia lisonjas e mais lisonjas: umas partiam da voz arrastada e fraca do velho, e outras de uma voz nem muito grave, nem demasiada aguda, mas energética e cheia de sotaque. O velho fez companhia ao que chegava, e chamava a velha que estava preparando algo na cozinha. Vi, finalmente, o sujeito entrar: um rapaz de movimentos delicados; magro (não suficientemente caveiroso, mas nada que podia se chamar de atlético); o rosto fino, os cabelos cumpridos e o nariz afilado davam-lhe traços femininos, ― seria um rosto mulheril se não fosse à maxilar robusto e a barba por fazer (Eu disse a mim próprio, na mente, que era uma mulherzinha do nariz pra cima). Tinha boa aparência. Aparentava ele ter mais idade do que eu, pela altura e pela barba. Vestia uma roupa de cores clássicas, toda combinada perfeitamente com o chapéu marrom, que mantinha na mão pra fazer jus aos gestos de cortesia do velho. A velha chegou à sala com as mãos sujas de farinha de trigo, e se esquecera de tirar o avental pra receber o quem a visitava; abriu um sorriso grande quando viu o jovem, e encheu-lo de lisonjas, assim com o velho fizera. Eu deixei-me estar na mesma posição de quando lia. Observava aquela cena tocante com muita atenção. O jovem girou o corpo e encontrou-me no canto da sala, próximo a janela, sentado numa cadeira de balanço com um livro por sobre as pernas. Olhou-me com os olhos espremidos, ― como quem faz força pra enxergar.

― Venha cá, Leonel! Venha conhecer seu primo. ― disse o velho.

“Primo?” Cogitei na mente. Aquele ser de presença comemorada era parente. Procurava eu traços da família no rosto do jovem a minha frente e não descobri nenhum, nenhum. Apertamos as mãos e ele sorriu me dizendo o nome: ― Camilo.
Retribui o sorriso, mas com força tremenda, nem sei a dissimulação fora notável, só sei que os velhos olhavam os dois jovens com um sorriso de quem viu algo sagrado, talvez dois querubins iluminados. A tia voltou pra cozinha dizendo-nos que o chá não demoraria a ficar pronto, e fiquei em companhia do primo e do velho, na sala de estar.

― Como foi à viagem, Camilo? Perguntou o velho.
― Muito tranquila, tio; os ônibus continuam oferecendo conforto, os pinheiros continuam num verde incrivelmente bonito, e a estrada está muito boa. Não tenho o que reclamar. O velho disparou mais algumas perguntas que foram respondidas pelo jovem em palavras metricamente intervaladas. Depois de um tempo, quando viu que os jovens assuntavam coisas de jovem, o velho se retirou e disse que ia ter com a velha, na cozinha. O assunto entre mim e o meu primo fluía como se fossemos íntimos; agradou-me a desenvoltura do rapaz que me dirigia a palavra. Falava-me coisas da cidade onde mora, sobre a profissão, sobre pesca, sobre ser filho de um primo do meu pai, sobre mulheres, e sobre a uma festa que aconteceria no dia seguinte, motivo pelo qual veio à casa dos velhos. Falou-me que todos os anos, na transição do outono para o inverno, vinha só por causa dessa festa, pois morara nesta redondeza muito tempo, e era acostumado a ser presente todos os anos. Falou-me também que não se sentia cansado e que iria pescar, dali a pouco, que não via a hora de se meter no mar pra matar a saudade da sua terra e pra fazer o que mais gosta. Encheu-me de ânimo o primo; disse-me que me levaria junto e que me ensinaria as manhas de pescar, e iria pescar lá no mar, onde mora os meus pensamentos, ou o meu pensamento. Enquanto ele me falava dos lugares que iríamos, minha consciência me dizia que eu estava de castigo, mas eu era crente de que o velho não me ia fazer a desfeita de não me deixar fazer companhia ao estimado sobrinho dele, pois este tinha uma alegria tão sincera e bonita no rosto (que mais parecia uma criança quando no playground), que faria qualquer velho rabugento se tornar um anjo que toca lira e canta para acalentar criançinhas.
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Despeito Amoroso (no próximo)
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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

QD (PARTE NONA)

São Luís, 25 de Setembro de 2009


O castigo

O TIO ESTABELECEU UM CASTIGO para o “fujão” (assim ele me chamava depois do feito aborrecedor), um castigo pueril, coisa que eu nem sequer bradei, pois lavar louça, cuidar do jardim, dar comida a um papagaio, lavar a camionete e outros pormenores, não me faria sentir tédio, eu até gostei dos trabalhos, só não gostei de quando ele me falou “E tudo isso sem ir a passeios na praia, até segunda ordem!”. Ai, leitor, esqueça que eu disse que não sentiria tédio, pois sem praia... E até a segunda ordem, por qualquer tempo que fosse, era muito. Tempo suficiente para eu sentir triplicar a culpa que sentia, pois Monise, se eu bem entendi aquela voz doce ao pé do meu ouvido, estaria por lá a me esperar, enquanto eu cá atribulado a lavar louças, a cuidar do jardim, a dar comida a um papagaio...


Dito e feito

DITO E FEITO: a culpa me consumia. E era passado só um dia de castigo. Nada de segundo ordem. Eu deitei a cabeça no travesseiro e pedi perdão a sardentinha; dormi com um aperto no coração, e acordei com a saudade no rosto que eu olhava no espelho do banheiro. Não se passava um minuto sequer sem que eu cogitasse o que Monise estava fazendo, se me esquecera, se sentia raiva, decepção, saudade... E já no segundo dia estava farto da solidão. À chegada da tardinha era pra mim motivo de tristeza, pois lembrava a minha serena caminhada pelas dunas. Eu nada fazia além de observar pela janela os movimentos da casa do vizinho e ouvir as conversações. Deixava-me estar no vão da janela a descansar os braços cansados de fazer as tarefas domésticas. Meus olhos eram fixos nos vultos da casa do lado; a cabeça, nas dunas. Com a chegada da noite, ia eu ter com os velhos até à hora do jantar. Ceávamos. Eu deixava-me estar na sala, quando os velhos se retiravam pra dormir. Folheava algumas revistas, olhava a rua pela janela da sala, sentava-me na poltrona do velho e fazia jus à tristeza olhando para nada, só para a imagem que era fixa nos pensamentos. E era triste assim, que eu ia direto pra cama.



O terceiro dia

Vi, pela janela do quarto, ao alvorecer, chegar uma neblina rala, pouco parecida com a do dia do último encontro com Monise. Fazia frio. Deixei-me estar na cama a meditar, até chegar à hora em que costumava levantar. No café da manhã, em companhia dos velhos, não fluiu assunto por tempo; mantinha o pensamento longe. Os velhos, de súbito, deram início a uma prosa, que não me fiz de interesse, nem se quer fazia questão de escutar os ruídos, pois eram sempre os mesmos assuntos, até parecia encenado. Depois do café da manhã a velha abria um armário, tirava as tralhas de coser e ia direto pra sacada se sentar na cadeira de balanço; o velho ia até a caixa de correios, tirava de lá o que tivesse, voltava pra sentar na poltrona e preparava todo o ritual de acender o cachimbo. Enquanto eu, sentado ainda a mesa do café da manhã, com olhos de vidro, mirava a xícara de café fumegante; enquanto isso uma mão segurando o queixo e a outra brincando com o pão. As tarefas do castigo eram feitas muito depressa, e bem feitas (segundo a velha); logo depois do meio-dia eu estava livre pra fazer o que quisesse, menos ir até as dunas.

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O primo Camilo (no próximo)

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terça-feira, 22 de setembro de 2009

QD (cont) PARTE OITAVA

São Luís, 22 de setembro de 2009


O esporro

DO FIM DA RUA, onde estava o velho Valdir, dava pra ver a outra rua, a casa. Eu caminhava lentamente, pelo medo e pelo cansaço. Estava eu chegando à casa junto com uma dor na cabeça, que se espalhava pelos ombros, costelas, espinha, até latejar nas pernas; chegava também um resfriado (o nariz escorria e de quando em quando espirrava). Um fluído incógnito fluiu pelas veias, senti algo parecido com adrenalina, ao ver a casa com as luzes acesas. Mas ainda havia esperanças em mim; até o fim podia acreditar que os velhos não tomavam conhecimento da minha fuga; mas tudo desmoronou quando vi a tia velha na sacada, sentada na cadeira preguiçosa ― não pude notar se dormia. Tive uma súbita idéia de desviar o caminho e entrar pela janela por que fugira, mas ouvi rumores na sala de estar; uma silhueta magra e lenta aproximou-se da janela, colocou rosto fora, e os olhos trêmulos encontraram os meus num instante; sério e fixo e um desapontamento estampado nas rugas e na rabugem da idade. Disse-me “boa noite” com a voz bem entoada, firme; eu o respondi com um espirro, e depois outro. ― fato este que fez a velha acordar em sobressalto. A velha tinha um ar pacífico, brando; mas não falara palavra (tive receio, pois desconfiava que debaixo daquela placidez houvesse uma raiva febril). Adentrei junto cm a velha; o velho tio fazia caminho da janela até a poltrona; retomara a posição de costume: pernas cruzadas e cachimbo na mão. A atmosfera era pesada na sala de estar por causa do fumo espesso que flutuava; presumi que o velho fumava com demasia, quando atribulado. Deixei-me estar num canto da casa, a vista do velho, tremendo, espirrando e molhando o piso de madeira com a água que escorria da roupa molhada.
― Você tem noção do que fizeste, garoto?
Aquele “garoto” soou com desdém; senti-me destroçado, pois sem sombras de dúvidas tinha eu causado fúria no velho, notava-se pelo tom da voz e pelo modo de balançar a cabeça.
― Você prometeu falar com ele só amanhã, meu velho ― disse a velha ― olha só o estado do menino (o “menino” me fez sentir mais infantil do que o irmãozinho de Monise); deve trocar de roupa imediatamente. Olha só como molha o piso! Vá, vá, vá, meu filho!. Enquanto isso eu vou lhe preparar um chá. Veja como espirra! Sorte sua se não adoecer feio.
Eu não tinha cara pra meter em nenhum buraco de tanta vergonha, enquanto a velha caminhava lentamente e o clima pesava; tanto que não falei palavra, e omiti toda a dor que sentia naquele momento. Fez-se o silêncio mais aborrecedor da minha existência. Deslizei da sala para o banheiro olhando para o tio, que resmungava baixinho e olhava para um ponto fixo que não me fiz saber.


Quem na cozinha medita?

LI UMA VEZ em um clássico da literatura: “Só as grandes paixões são capazes de grandes ações”. Não sei se correr atrás de uma promessa insana pode se encaixar no que o autor intitula “grandes ações”. Ora, grandes ações, cuido eu, equivale a belas ações, bem-feitas ações, aquelas que abeiram o êxito a cada ocorrência, até chegar o soberano golpe final, o que bate martelo, o que fecha conta, o que eterniza o mérito. Não os que te rendem esporros, resfriados, dores musculares e te deixam na penumbra da cozinha tomando chá em companhia de uma velha de olhos secos e de um ar assombroso. Porventura, lembrei-me de uma proposição do mesmo autor: “Quem escapa a um perigo, ama a vida com outra intensidade”. Querendo ou não, parte da minha vida tinha sarda e nome: Monise.
Por mais que uma parte da minha lucidez repetisse incessantemente ao meu ouvido “Amor prematuro! Prematuro! Prematuro”, parte da minha ‘maluquês’, com a boca suja e a cara limpa, retrucava “prematuro é o ‘caralho’”.

― Quer mais chá, sobrinho? Disse à voz que surgiu da penumbra, ao mesmo tempo em que bocejava.
― Não... Não... Obrigado, tia. Quero mais é ir pra cama.
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O castigo (No proximo)
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domingo, 20 de setembro de 2009

Qase Delírio (Cont)

São Luís, dia que não lembro de outubro de 2009.
No caminho, surge um certo Sr. Valdir

CAMINHAVA A PASSOS LONGOS, os braços cruzados, cabeça baixa, completamente dado ao medo. Eu estava na metade do caminho até a casa, e as palavras do velho tio soavam de quando em quando no meu ouvido, como assombros. O rosto de Monise voltou a minha mente, não como a dona dos meus pensamentos, mas como culpada pelo meu tormento.
“― Ès tu mesmo, Monise, a culpada! És tu! Tu! Tu!”, ― dizia na mente.
Metade de mim sentia medo, a outra metade sentia raiva. Insano, culpava Monise pela situação desagradável que então eu estava só porque aquele rosto sardento e jovial me fizera ficar por horas longe de casa, longe dos cuidados dos velhos tios, perto de uma febre e perto de um esporro.
Eu já passava pelas ruas das casas de muros grandes, ― já mais próximo da casa dos tios do que da cabana ― senti certo alivio, pois lá tinha boa iluminação. Mas o medo ainda era presente, os passos ainda eram rápidos, eu ainda delirava em culpar a filhinha de pescadores, com certo desdém, como causadora de toda a aflição (Arrependi-me de fazer pouco-caso da moça e rapidamente e voltei a ser o apaixonado). Num ponto alto da agonia senti tremer os lábios e murchar os olhos, e sem forças pra segurar o choro, os olhos molharam-se-me junto com a chuva; uma lamúria serena (esquisito é chorar serenamente, quando atribulado). Ao choro caminhava eu por cima das calçadas, eu já estava quase no fim da rua, quando avistei um senhor, aconchegada no vão de uma porta de uma das casas, coberto por um manto sujo e apenas o rosto a mostra. Segurei o choro pra parecer firme, desacelerei os passos e me fiz cauto olhando fixamente os movimentos do velho, que ainda não tinha me visto. O velho, quando me viu, estendeu-me a mão e resmungou algo que não entendi; eu continuei a andar fito no vulto.
― Hei, garoto! ― chamou-me o velho.
Eu, tomado de receio, aturdido pelo susto que tomara ao ouvir a voz forte e grave do espectro que se escondia no vão da porta, parei e me pus frente a frente com o mendigo.
― Você tem relógio? ― Perguntou o vulto com a voz menos volumosa e demonstrando boa sombra com um sorriso no canto da boca.
Hunrrum... Sim... Sim... ― ainda assustado, trêmulo, puxei a manga da camisa e informei-lhe a hora e fiz menção de continuar a caminhada, mas o velho me chamou a atenção outra vez.
― Espere! ― Disse enquanto saia debaixo do manto ― Por que não espera a chuva passar? Assim você me faz companhia. Olhe só pra você. Não tem medo de adoecer, garoto?
O velho não me esperou responder; com um gesto de cortesia e um sorriso sereno, puxou-me pelo braço e me pôs junto de si, no vão da porta. Estava eu no mesmo espaço de um mendigo, dividindo a penumbra, o teto, e os pingos espevitados da chuva grossa. Disse ao velho que não podia ficar porque já estava encrencado por demais pra demorar mais alguns minutos; mas ele ignorou o que eu dizia e me interrompeu apertando-me a mão e dizendo o nome ― Valdir. Disse pausadamente e nem quis saber o meu, presumi. O velho de poucos cabelos parecia não notar a minha angustia, continuava falando. Tinha os olhos sujos de remela e parte do corpo a tremer; era magro. Os pés rachados tremendamente sujos; as pernas tão magras que mal podiam sustentar o tronco, que mal podia sustentar a caveira; tinha mais orelhas do que dente. Era notável a pobreza do homem maltrapilho, mas não tirava o sorriso do rosto. Falou-me coisas sobre a cidade, sobre a época quando jovem, das duas filhas que não via há décadas, da esposa que falecera no parto da segunda filha, sobre uma casa na praia que fora engolida pelo mar, sobre a pobre infância em outra cidade, e sobre mais meia dúzia de suas desventuras que não porei aqui neste texto pra não alongar a narração.
Eu deixei-me estar com o velho tempo suficiente para ele me contar a poesia triste da sua vida dele, e eu bocejar três ou quatro vezes. Presumi, depois de um ato do velho, que não me pareceu lúcido, que ele caducava: ele olhou certo tempo à chuva e com o dedo indicador seguia alguma coisa que voava (coisa que só ele enxergava) depois se calou, fechou os olhos e disse algumas palavras com as mãos dadas.
― Agora tenho que ir, Sr. Valdir ― Disse, e deslizei-me com agilidade para fora do vão onde estava. ― A chuva não é mais aquela de agora pouco, já posso ir andando tranquilamente.
― Mas você se vai assim? Nem me disse seu nome.
― Leonel.
― Bonito nome...
O velho persistia em alongar a prosa, mas eu o interrompi.
― Sr. Valdir, tenho que ir, não posso ficar aqui nem mais um minuto.
― Por quê?
― É... Porque... Ah, Senhor, eu já lhe contei sobre minha aflição e minha encrenca!
― Certo, garoto... Quer dizer... Qual o seu nome mesmo?
― Leonel.
― Sim, Leonel, você se vai e vai me deixar de mãos vazias? Dê-me um trocado.
Eu, sensibilizado com o pedido do velho mendigo, revirei as mãos pelo bolso e com dificuldades achei algumas moedas.
― Toma, Sr. Valdir; não é muito mais acho que dá pra comprar algo pra comer.
O velho analisou as moedas e colocou-as uma por uma dentro de uma cuia que mantinha ao pé de si. Fitou-me, torceu o nariz, levantou as sobrancelhas.
― Comida não, mas fumo.
― Fumo?
― Sim. Fumo. Com esses trocados dá pra encher três vezes o cachimbo.
― Deixa de comer pra fumar?
― Não. Claro que não. È que com dinheiro pouco, compro coisa pouca, e se não dá pra encher a barriga, encho os pulmões. Meu filho, a vida é cheia de “esquisitices”, sobretudo nas dos mendigos; quando não posso dar a alegria ao estômago, dou-a aos pulmões, mas nunca deixo de fazer alguém feliz.
O velho riu brevemente e me agradeceu.
Deram-se fim as minhas dúvidas; aqueles olhos não eram lúcidos, o velho caducava; nunca ouvi um provérbio mais atroz do que este.
O papo com o velho demorou o que a chuva acalmasse. Pus-me a caminhar; deixei o velho a se cobrir novamente com o manto sujo.
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O esporro (no proximo post)
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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Quase Delírio (PARTE SEXTA)

São Luís, 15 de stembro de 2009
À volta a casa


DESFIZEMO-NOS DO ABRAÇO, e ela se despediu também com os olhos: o olhar que as dunas novamente se me revelara. Monise e família se afastavam enquanto eu deixei-me estar ao pé da cabana, aturdido pelas palavras que acabara de ouvir; ora, antes ela ofegava, era muda e tinha olhos caídos de febre, mas na despedida se me mostrou uma inesperada malícia ― fato este que me fez distraído ao ponto de não notar a chuvinha que surgia. Olhava fixamente Monise sumindo na noite, e ela não me cedeu mais um olhar, um desejado último, um que não me rendesse dúvida, nenhum olhar. Sumiu por completo.
Eu estava em companhia da cabaninha, da noite, da chuvinha (então notável), da bruma ressurgida, e do medo.
Foi uma assombrosa caminhada até as dunas; a escuridão me escondia o perigo a pouca distância de mim, pois não podia eu enxergar dois metros a minha frente. A minha mente já era paranóica: via em galhos secos no chão, corpos humanos; via a névoa que tocava o chão formar espectros; os gritos dos mochos me causavam sobressalto. O chacoalho dos sapatos encharcados não me deixavam ser silencioso, e as pernas, de tanto forcejar os passos pesados na areia, aos gritos, queixavam-se-me de cansaço. Então, na subida a duna, a cabeça, que só servia pra formar a imagem do rosto da sardentinha na mente, dera aos pés todo o ofício de conduzir o corpo, e este, reclamando-se de dor, aos trancos, fazia todo o trabalho.
Uma parte do caminho já era feito; havia eu passado pelas dunas e já pisava em “terra firme”. A pouco já estava a ver a avenida, a ouvir os estalos dos pingos da chuvinha que se esborrachavam no asfalto. A chuvinha cessou subitamente, mas rapidamente dera lugar a um toró ― fato este que me fez acelerar os passos.
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No caminho, surge um certo Sr. Valdir (no próximo)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Qause Delírio (Parte Quinta)

Cont

DEMORAMOS NO MIRAR, face a face, muitíssimo próximos; ela com o olhar caído e eu a olhando fixamente nos olhos; já podia eu sentir o calor que ardia no rosto dela. Monise, por mais que ofegasse, por mais pressionada que estivesse não cedia palavra alguma sobre o olhar que se escondeu atrás das dunas, o segundo olhar, o que me rendeu dúvidas entre a confirmação ou o arrependimento. A moça, que já tremia um tanto quanto eu, fechou os olhos e os abriu com rapidez, e demoramos mais ainda nesse embaraço. Os lábios chegaram a se tocar muitíssimo brevemente, nada que podia ser considerado um beijo, nem quase beijo, nem beijo involuntário, nem beijo algum. Fato este que fez Monise, com um movimento arrebatado, separar-se de mim com um empurrão e um gemido fraco e breve (com força de mais pra uma menina). Dessa forma, separamo-nos e fiquei eu a ver o cenário do lado de dentro da cabaninha por um rombo da porta velha, na mesma posição onde estava a segurar a mão da sardentinha; esta caminhou até próximo ao banquinho (onde nós outrora sentávamos), aturdida pela situação embaraçosa, talvez estivesse sentindo medo, ou estava envergonhada, só sei que alguma coisa sentira. Monise cortou pela raiz a minha euforia, – fato que me fez voltar o tremendo frio, – e aumentara a minha dúvida. Monise finalmente falou-me:
― A chuva cessou, Leonel, você já pode ir.
Não a respondi, nem sequer me movi, só escutei com tremenda decepção as palavras da moça atormentada, como se tivesse visto o diabo ou qualquer outra coisa que lhe metesse medo. Voltei-me a moça; estava ela de costas pra mim, com as mãos cruzadas e com a capa de chuva por sobre os ombros. Nesta hora senti vontade de falar-lhe tudo o que ela me causou, desde a promessa até a febre; mas fora eu medroso o bastante para ficar mudo. A moça me olhou por sobre os ombros e voltou a falar-me:
― Acho melhor que parta logo, teimoso!
Fiquei embaraçado com o “teimoso”, pois soou imperativo de mais. Dei dois passos até perto dela, queria eu tomar explicação pra aquele tom de voz, mas fui distraído ao ver um vulto se aproximar, que me fez frear os passos e me sentir alerta. Monise voltou-se para o vulto e abriu um sorriso esquisito, parecia ela conhecer o espectro que surgiu da escuridão, um homem com uma cabeleira ruiva, que aparentava ter uns trinta e poucos anos, vestido numa calça jeans mais surrada que o macacão dela, pés descalços, despido da cintura pra cima e com tralhas de pesca por sobre os ombros, trazia na mão alguns peixes amarrados num cipó, e na outra uma faca grande. O homem tinha aparência séria, quase medonha, o semblante era áspero.
― Vejo que hoje está acompanhada, Monise. Quem é o seu amigo?
Monise titubeou. Disse meu nome com a voz fraca e parecia intimidada pela voz grave e forte do homem. Voltando-se a mim, Monise me apresentou o senhor:
― Leonel, este é meu pai.
Eu apertei a mão e disse “muito prazer”, pra demonstrar boa sombra e disfarçar o medo.
― Você pegou muita chuva, rapaz? O que faz você aqui a esta hora?
Demorei formular uma retruca para aquele duplo questionamento, e acabei falando o mesmo que falei a Monise, outrora. Estava eu muito encabulado. O homem tinha a cara de mau, mas era aparentemente bem-humorado. Enquanto o homem me repetia às palavras de alerta do meu velho tio, vi, por trás dele, surgir mais duas pessoas: uma mulher que aparentava ter a mesma faixa de idade do homem (presumi que fosse a sua esposa); tinha os traços de Monise e era sardenta do mesmo jeito; era uma versão gasta da sardentinha; trazia consigo um balde de metal cheio de lagostas. E um garotinho ruivo e branquelo; trazia consigo uma pequena caixinha de madeira (presumi que havia dentro adereços de pesca).
Monise antecipou-se e foi logo apresentando a sua mãe e seu irmãozinho, com o mesmo acanhamento que apresentou o seu pai (era uma família de pescadores! Exclamava eu em pensamentos). Estava eu ali diante da família da mulher por quem me apaixonei... (sim, sim, estimado leitor, eu já podia dizer que estava apaixonado). Era uma situação muitíssima embaraçosa e engraçada ao mesmo tempo. Todos me cumprimentaram cordialmente e me encabulei mais ainda. A mulher notara e rui-se dizendo que as maçãs do meu rosto estavam vermelhas de acanhamento (todos riram, até eu). Monise mirava-me sem piscar os olhos, rindo-se; eu só a mirava de quando em quando, pois assuntava com sua família. Depois de uma breve prosa, o pai de Monise, interrompendo a conversa, disse-me que era hora de partir; apertou-me a mão, ― gesto repetido pela esposa e pelo filhinho; ― Monise foi a última a se despedir, e, diferente dos outros, em vez de me apertar a mão, deu-me um abraço e disse baixinho ao pé do ouvido: “cuidado pelo caminho, eu não quero que lhe aconteça nada de mal antes que eu te fale o significado daquele segundo olhar.”




Relevem os "errinhos" e os "errões" deste texto, não o corrigi devidamente.


No próximo post: A VOLTA PRA CASA

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Quase Delírio (PARTE QUARTA)

São Luís, 01 de setembro de 2009


O CESSAR DA CHUVA MARCOU O INÍCIO DO ALERTA; a chuva parou, e estava se aproximando o momento de eu fazer o caminho de volta pra casa; minha mente estava em conflito moral ― Ora, só de imaginar a vergonha que sentiria ao chegar a casa, caso os velhos estivessem acordados. (Sabe-se lá se a polícia podia estar a minha procura ou coisa parecida). Seria eu o culpado por qualquer eventualidade desventurosa. Suportariam os velhos o baque de uma má notícia do sobrinho recém-chegado? Se fosse eu vítima de uma atrocidade qualquer? Pobres senis. Minha tia, velha reumática e cardíaca; meu tio velho, demasiado velho. A minha integridade física nunca fora colocada em tamanha evidência a mim quanto nesse momento... Não muito por minha preocupação, mas as dos tios. Lembrava-me, de quando em quando, com tremendo desconforto, das palavras do meu tio a me alertar. Preocupei-me verdadeiramente com a saúde dos anciões. Tardou a chegar por completo a minha lucidez, e chegara junto o medo... Nesse momento senti medo. Encontrava-me numa situação de guerra e paz nos meus pensamentos. A aflição era, porém, bloqueada por um alento maior e de difícil explicação... Devo dizer que com facilidade suportava aquela aflição que me causava a situação, pois estava ali, diante de mim, com o olhar vigilante e fixo, com postura supinamente séria: Monise; que revelara os cabelos longos que antes se escondia por baixo da capa de chuva, e olhava-me de quando em quando com olhos de leoa a vigiar o seu filhote: eu, um tamanho macho, ― trêmulo e inquieto ― exposto ao frio e ao relento. Confesso que me sentira menos macho nesse instante, pois estava eu tremendo debaixo das vestes úmidas enquanto a fêmea se comportava como líder do bando.
Tive com ela todo esse tempo; mas, envergonhado, não conseguia sequer falar; receava mostrar-lhe a minha voz fragilizada pelo tempo frio (bastava-lhe a roxidão dos lábios e o tremelique do corpo). Tinha vontade de perguntar sobre ela, mas a moça era séria e não mostrava interesse por diálogo. Monise pôs uma das mãos estendida para avaliar o nível da chuva, que de fato já havia terminado; olhou firmemente para a torrente formada ao pé da cabana, voltou-se pra mim e despindo-se da capa de chuva falou-me “Demorou a passar essa chuva” ela disse também outros pormenores sobre tempo e chuva enquanto eu permanecia sentado no baquinho velho. Por baixo da capa de chuva, Monise vestia um macacão jeans surrado com colarim dobrado até o meio das canelas e uma camisetinha branca por baixo; os cabelos avermelhados e lisos eram escorridos por sobre os ombros sardentos (sardentos como o rosto). Monise ― silenciosa e sombria ― se movia lentamente a minha frente. Minha contemplação já era notável a ela, pois ela curvava o seu olhar rapidamente a toda vez que encontrava o meu, que perseguia o dela. Monise sentou-se junto a mim no banquinho, pôs as mãos em descanso e cima das coxas e hesitando me perguntou.
―Você parecia concentrado ali próximo ao mar; o que fazia ali sozinho?
Revelar a resposta para essa pergunta era pra mim mais difícil do que tirar forças pra não tremer a voz. Como eu poderia falar ― assim de cara ― que estava eu lá por causa da promessa que fiz outrora a ela? Seria isso a centelha para um a série de revelações, pois teria que lhe falar do desconforto que senti na tardinha, da fuga, da febre... Tudo por causa da moça que se insinuava no olhar de outrora. Enquanto eu demorava a responder, Monise me olhava com um aspecto curioso (levantou as sobrancelhas e enrubesceu a testa como se estivesse esperando sem paciência). Mas, do fundo dos pulmões, surgiu uma resposta minha.
― Eu contemplava o panorama; estive aqui ontem, me encantei com o lugar e senti vontade de vir hoje. ― Com uma dúvida estampado no rosto, Monise voltou a me questionar.
― Não passou pela ta cabeça o frio e a tremedeira que ia sentir com essa chuva fria? Devo confessar-lhe que tu és corajoso, pois...
Interrompi-a dizendo:
― Foi uma promessa!
― Promessa?
―Sim, uma promessa. ― Observando com espanto o rosto de monise continuei ― Prometi que voltaria a visitar a natureza e os navios, e tratei essa promessa como uma dívida.
Mal podia saber o que se passava na cabeça da moça ao meu lado depois de tal revelação; eu só sei que na minha, ao omitir que a promessa fora também para ela, sentira uma enorme vergonha de mim próprio, senti-me menos macho do que eu era a pouco. Enquanto eu tremia vendo a moça séria, sentia um vazio maior que o desconforto da tardinha, e numa tentativa de atenuar esse cálice, tratei de mudar logo de assunto:
― Você me perguntou se eu não era daqui porque eu contemplava o mar sentado numa pedra, pois as pessoas desse local não mais fazem isso; mas e você; você demorou um tanto quanto eu a contemplação, e creio e que você é daqui, pois me alertou da periculosidade.
― Eu moro aqui desde que nasci, mas sempre contemplo esse lugar com os mesmos olhos de criança, diferente dos outros que se limitam ao trabalho.
Nessa hora Monise se levantou e se pôs no vão de uma porta velha e lá ficou parada olhando para um ponto que não me fiz perceber, eu só sei que me levantei com dificuldades (Permanecera eu muito tempo numa posição) me pus defronte a sardentinha, controlei-me para não tremer e fixei meus olhos atrevidos nos afugentados que era os dela. Como se vencida pelo cansaço, Monise fixou os olhos nos meus, demoramos no mirar até quando ela quebrou o silêncio falando-me sem tirar os olhos dos meus:
― O que tu queres ver com esse olhar bastante atrevido? (Atrevido! Atrevido! Ela é perita em leitura de olhares, presumi em pensamentos) Eu, num movimento muitíssimo rápido, olhei para a boca de lábios rosadinhos e cheios, e voltei para os olhos.
― Eu quero ver se de perto eu descubro o significado daquele olhar de ontem; aquele que se escondeu por trás das dunas.
Com efeito, depois de ter falado o que eu temia falar, senti-me descarregado da culpa e um alívio que, como uma onda de calor, me confortou de tal forma que poria aqui se soubesse distinguir e se não tivesse as mais ridículas comparações em mente... Enfim, voltemos à reação de monise: Os olhos voltaram a ser fugitivos, as mãos esconderam-se no bolso do macacão. Notara eu que a moça fora pega de surpresa. Permaneci na mesma posição sem mover os olhos para outro sentido. Passavam-se mil coisas pelos meus pensamentos, e uma era que, nessa altura, ela já sabia que além dos navios e da natureza, a promessa fora feita a ela também. Então, pra ela, muito de mim já se lhe revelara. Mas a resposta demorava e o tempo passava com velocidade. Monise finalmente voltou a me fitar, os lábios fizeram menção de se separarem para dar passagem à voz, mas a menina de macacão jeans hesitava. Eu a toquei na mão (forte e bronzeada, típico de quem mora na praia) com a minha (Branquíssima e consideravelmente frágil para um rapaz de dezenove anos) ela soltou um suspiro e quase falou alguma coisa, mas freou-se, e logo fugiu novamente o olhar. Eu, ainda “suficientemente” medroso e tímido, movia-me pra mais perto dela, mas só que numa velocidade diminuta, comparável a o ponteiro menor de um relógio, o que marca a hora. Demoramos nesse impasse que eu confesso que era bastante agradável a mim, pois eu já chegara num instante que eu podia sentir o cheiro de Monise; era um cheiro desconhecido pra mim, mas confesso que fora o melhor instante que estive com a sardentinha até então, pois a mistura de mulher e praia que adentrava agradabilississimamente as minhas narinas (podia eu chamar esse momento de delirante) fez-me esquecer por hora jasmim, lavanda, rosas, perfumes de francesinhas... Era um cheiro que não sabia eu nomear, mas era o mais deleitável que eu senti na vida. Monise voltou o rosto pro meu que já estava por de mais próximo ao dela; neste instante ela me olhava com os olhos caídos como se tivesse febre; eu segurei mais forte a sua mão (ela ofegava) e finalmente quebrei a falta de diálogo cobrando a resposta da minha pergunta, já com os narizes se tocando...

CONTINUA

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Quase Delíro (Cont) Parte 3

São Luís, 26 de agosto de 2009

ANTES QUE EU PUDESSE CRIAR CORAGEM e virar pra ver a dona da voz, observei a onda saindo da bruma e cobrindo novamente meus pés e parte da canela; o frio da água, com o frio das gotas da chuvinha e com o frio do sangue, congelou a coragem de me revelar o rosto espantado. A voz repetira o “olá” seguido de “o que faz ai sozinho?”.
Num súbito giro ligeiro desatolei o pé da areia meio desajeitado e, sentindo um enorme acanhamento, me pus frente a frente com a tal moça dona da fala, que ria disfarçadamente da minha atrapalhação. A moça de capa de chuva amarela revelava somente os pés descalços e o rosto; com um sorriso desembaraçou-se de um pequeno gracejo para um hilariante rosto risonho, advertiu-me do perigo que era andar por aquelas redondezas num estado de tempo tão medonho, e fez esforço pra não soltar, junto com as palavras, risos. Intrigara-me o motivo de tanto alegria daquela moça a minha frente, a sardentinha dos olhos grandes; ria-se como se estivesse a apreciar um teatro humorístico, divertia-se as custa da minha atrapalhação, e não evitara o contrair dos lábios rosados e vultosos numa sonora risada. Fixei o olhar, atinado, nos olhos castanhos escuro da moça risonha a minha frente; esta se percebeu em um separado momento de descontração, mudou subitamente o semblante, corou as maçãs do rosto, e percebeu-se em incoerência, envergonhara-se, uma vez que não surgira em mim nenhum senso de humor. O chuvisco caia sobre mim e sobre a capa da moça – fato que produzia sons de estalinhos. Com o aspecto preocupado, serenamente, a moça falava do meu aspecto de espanto “Seus lábios estão arroxeados, faz muito tempo que você esta ai sozinho?” eu a respondi com um aceno de cabeça positivo (trêmulo da cabeça aos pés); a sardentinha franziu a testa e mostrou-se assustada com a resposta positiva “você deve não ter ciência de quanto é perigoso andar por aqui...” enquanto a moça advertia-me, estudei por tempo a sua feição e a interrompi com a voz arrastada e trêmula “engraçado eu ser persuadido de periculosidade por uma mulher. E você, o que fazes também sozinha? Aqui não é perigoso?” a moça fez cara de insultada e soltou um riso debochado enquanto virava o rosto de lado e me respondeu com outra pergunta “deixa-me adivinhar: você não é daqui, certo? Com aceno de cabeça respondi que sim, preferi responde-la a cobrar uma resposta; a moça estendeu-me a mão “como eu pude ser tão mal-educada... Permita-me que eu me apresente, meu nome é Monise.” eu também estendi a minha mão gelada e trêmula “Meu nome é Leonel, muito prazer” depois de nos apresentarmos, por um tempo, sentindo parar o chuvisco, quebrei o silêncio que pairava entre mim e a moça cobrando-a resposta para a minha pergunta que fizera a pouco “você não respondeu a minha pergunta, Monise” a moça hesitou, talvez demova a organizar a memória – nesse momento ela foi salva pela chuva que caiu subitamente e com muita força. A moça me pegou pelo braço e me puxou; com pressa, disparamos a correr; os meus sapatos faziam um barulho de chacoalho e eram pesados; a jaqueta e a calça jeans molhadas me davam uns cinco quilos a mais; fazia eu muito esforço pra correr com o mesmo rítimo daquela garota de capa de chuva amarelo e de pés ligeiros como as de uma cotia.
Já era noite e corria eu pela penumbra, debaixo de uma chuva medonha com uma estranha. Veio-me a lembrança dos meus velhos tios, uma forte adrenalina me fez subir um frio na espinha; os velhos, obviamente, suspeitaram da minha fuga e sentiam-se desesperados por conta da preocupação, enquanto eu estava correndo na chuva, sendo levado por uma garota, por uma caminho estranho, a uma cabaninha estranha e escura que me veio a vista.
Adentramos num chalezinho velho e com cheiro de madeira molhada, eu sentado num banquinho velho e a moça em pé olhando a chuva; dessa forma demoramos sem dialogar, apenas ouvindo o som da chuva o os estrondos dos trovões. Monise notara o meu desconforto causado pelo frio e pelas vestes úmidas – tremia eu incessantemente – e dirigiu-se até perto de mim; eu, ao pé dela, falai-lhe antes que ela falasse “estou com muito frio” e ela repetiu o sermão “você não deveria ter saído de casa nessa chuva, aliás, você mora onde?” eu a respondi igualmente como ela me respondeu outrora uma pergunta: com outra pergunta “por que me perguntaste se eu não sou daqui” ela ignorou a pergunta e falou da chuva “essa chuva que não para...” eu a interrompi com um “por quê?” num tom tão baixinho e aveludado que mais parecia que eu estava implorando uma resposta, ela, abaixando capuz da capa de chuva, respondeu-me “pessoas daqui não mais contemplam a praia sentado na pedra da forma que você estava ontem.” Nessa hora eu senti um enorme frio no estômago, pois estava, sem dúvida, diante da moça que me causou febre, da moça que me tomava os pensamentos, que me causara desconforto na chegada da tardinha; a moça de capa de chuva amarela e pés descalços, a sardentinha, a Monise. Demorei a contemplar o rosto sarnento e sério de Monise, e mal notei o cessar da chuva...

CONTINUA


Roberto:
"Não reparem nos errinhos, este texto não fora devidamente corrigido.
Olhos cansados!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Quase Delírio (Cont.)

São Luís, 20 de agosto de 2009


O RELÓGIO CONTAVA 08h19min QUANDO ACORDEI sentindo frio; levantei-me num sobressalto e, confuso, dirigi-me até a janela que estava entreaberta. Pela brecha olhei a névoa que se apresentava como uma má notícia e esbranquiçava todo o panorama a minha vista.
Planejara no dia anterior, fazer um passeio na praia no período da manhã, mas fazia frio demasiado e a bruma era por de mais espessa – não podia eu ver três metros a minha frente.
Deixei o quarto e, acompanhado pelos meus velhos tios, fui tomar café. Enquanto enchia a xícara e cortava o pão, ouvia a conversação que fluía entre os senis: “Parece que hoje vamos ter um dia daqueles, disse o velho, não demorará pra que os jornais nos deixarem alertados sobre o perigo que trás a névoa; ultimamente têm-se notícias de vários furtos e assassinatos por estes lados da cidade.” “Já deveria ter trocado as fechaduras, meu velho – disse a velha – todo cuidado é pouco para a segurança da casa. Ainda bem que fizemos compras ontem, pois eu não arredo o pé de casa hoje, tenho muito medo de delinqüentes (...)”

Fiz-me atento a conversação e entristeci-me com a situação do tempo, pois planejara reencontrar a todos quem eu prometi voltar quando no passeio de outrora pela praia: “Voltarei amanhã, Natureza. Voltarei amanhã, navios. Voltarei amanhã, moça. Amanhã.”Senti-me angustiado por toda a manhã, pois o fato de não poder cumprir a promessa de voltar à praia me causava tristeza e desagrado. Passei o horário de almoço perto da janela de vidro, na sala, vendo um fino chuvisco se apresentar.
Enquanto os pingos de chuva embaçavam a vista da janela e trazia com ela mais angustia a minha pessoa, eu refizera, em mente, o passeio de outrora; como um sonho: vieram-me as imagens que se via de cima das dunas naquele momento: as silhuetas dos navios no horizonte distante; o contorno das pessoas que por lá passavam; a moça sentada na areia (Ah! Aquela moça).
À tarde assuntei com meu velho tio coisas sobre o tempo e periculosidade. O velho falou-me dos crimes que em dia de névoa aconteceram ali perto e outra série pormenores que não porei no texto pra não alongar a escrita.
Importunara o tio com vários questionamentos.
A velha trouxe biscoitos e chá pra mim e para o velho; éramos quietos enquanto ceávamos. Depois de uma longa pausa, meu tio alertou-me do perigo dizendo-me que melhor seria que eu ficasse em casa neste fim de tarde, pois dessa forma estaria eu em segurança. Tal coisa dita pelo velho me deixou entristecido. Como poderia eu quebrar uma promessa tratada como dívida? O que pensariam de mim os navios? Perdoar-me-ia a natureza? E a moça (A moça! A moça!) que já era dona dos meus pensamentos, perdoar-me-ia?
Senti-me destroçado. O tédio chegara junto com o fim de tarde. Deixei meus tios avisados de que me recolheria mais cedo ao quarto; iria me distrair em leitura, uma vez que não podia sai de casa.
Sentado na cama, olhei e torno de mim e nada vi pra que me pudesse distrair; logo a angustia de ser um mentiroso, a dor que me causava a o desapontamento da natureza para comigo, e o desprezo da moça, consumia-me os pensamentos; nada poderia me curar da aflição que sentira.
De súbito, depois de mirar por muito a janela, veio-me a idéia de fazer tal passeio em segredo. Foi o que fiz sem hesitar. Com poucos minutos eu já estava cruzando as ruas dos enormes casarões que se escondiam atrás de muros longos, com as roupas e os cabelos umedecidos pela chuva fina. Cruzara a avenida já encharcado e, enfim, as dunas. Caminhava eu, lentamente, por sobre a areia molhada. Do alto das dunas, com dificuldades, só enxergava névoa. Difícil era ver o horizonte, só se escutava o barulho das ondas. O frio aumentara e eu não conseguia me locomover a outro lugar, permanecia nas dunas sem esperança de ver alguém por perto.
Os navios eram escondidos na bruma; a natureza era camuflada na penumbra que chegava com a tardinha; a moça... Ora, a moça não teria uma infeliz idéia de passear naquelas condições de tempo. Só um louco que caminha como um errante atordoado por uma promessa que caminha pelas ruas em meio tanta neblina, desafiando o perigo. Afastei a manga da camisa e olhei o relógio que contava 17h52min, tornei a cobri-lo e suspirei.
Tido como um louco por mim próprio, atordoado, fiz, com dificuldade, uma descida duna abaixo até a praia. No caminho, avistei a pedra onde eu sentava outrora; e, a alguns metros dali, o lugar onde sentara a moça, vazio. Sem conseguir meditar por perturbação causada pela aflição que me causara a revolta de não vê-la, caminhei até chegar a um ponto onde eu podia ver o quebrar das ondas; deixei-me molhar os sapatos e pus-me a meditar: “Só tu, natureza, fez-se presente a mim em meio tanto frio e tanta bruma, e com tuas águas alegrou-me a tocar meus pés.” “Ó Moça que me causou febre, será mesmo que aquele segundo olhar significou o arrependimento”? “Pois se for bem verdade isso que me atormenta...”
Cessei a meditação, pois fui interrompido por rumores de vozes atrás de mim. Um estranho sentimento me dividia entre o medo e a ansiedade. Eu era paralisado como um espantalho e me fiz cauto a filtrar os sons que se misturavam: o quebrar das ondas e as vozes. Permaneci na mesma posição e notei que as vozes cessaram; somente o mar produzia sons nesse momento. Durou o ócio. Inesperadamente senti um toque no meu ombro e um "olá"; era uma voz feminina...



Continua

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Quase Delírio

São Luís, 15 de Agosto de 2009



O passeio

AQUI é tão ruim pra você, sobrinho ― disse minha tia velha enquanto cosia sem tirar os olhos da agulha ― não há pessoas da sua idade pra conversar. Entristeço-me ao ver-te ai, desanimado. Por que não vai até a praia? Vá, meu filho! Caminhar um pouco pode ser uma boa distração.”
Dito isso, o velho, sentado na sua poltrona, ouviu a proposta da velha para com o sobrinho e fez gesto de aprovação com a cabeça, enquanto o fumo fazia passagem por entre os lábios e dava peso na atmosfera da sala. A princípio, achei péssima idéia fazer uma caminhada até a praia, aliás, sozinho, seria triste o bastante pra aumentar minha angustia de estar entre pessoas velhas e silenciosas. Mas entre ficar em casa vendo o velho tio lê jornal e fumar cachimbo e a velha tia coser, optei por ir a praia sozinho. Ao sair de casa, fiz uma serena caminhada ― A distância entre a casa dos velhos tios até a praia não era o suficiente para causar dor nas pernas; quiçá, meditar. Durante a caminhada, andei por ruas estreitas, arborizadas. As casas eram, em maioria, escondidas por trás de grandes muros. Cruzei duas largas avenidas e, finalmente, cheguei à praia. Ao contemplar o mar, mudei, subitamente, o juízo de que seria uma viagem perdida e sem bel-prazer; logo, o cenário a minha frente era-me deslumbrante (Quiçá o mais da minha vida): O mar era sereno e alaranjado por causa dos raios de sol que perfurar uma enorme nuvem, como enormes flechas ― fato este que formava uma coisa que a arte tenta retratar: um espetáculo de luzes e sombras ― as silhuetas dos navios enfileirados no horizonte longínquo; o contorno das pessoas que caminhavam a beira-mar. Durava a minha contemplação de todo esse panorama. Meu olhar se dividia entre o pôr-do-sol, os navios e uma moça que, a uns cinco metros de mim, estava sentada na areia. Esta parecia admirar também o que eu apreciava, sem se importar com o vento forte a agitar freneticamente os seus cabelos. O tempo passou mais rápido do que o vento. Chegara o crepúsculo quase sem eu perceber; e, junto com ele, o alerta. Levantei-me da pedra na qual estava sentado. Despedi-me, em pensamentos, da natureza, dos navios e da moça que ali permanecia quase imóvel, se não fosse pela agitação dos cabelos. Assegurei-lhos voltar: “Voltarei amanhã, Natureza. Voltarei amanhã, navios. Voltarei amanhã, moça. Amanhã.”Fiz menção de caminhar, mas a moça se fez notável a mim quando, subitamente, levantou-se, separou a areia do corpo e passou as mãos pelos cabelos. Parei para contemplá-la por mais alguns instantes. A moça, antes de ir embora, fitou-me por sobre o ombro, retirou rapidamente o olhar e seguiu caminho a ir-se embora. Com o olhar fixo, observei, por todo seu percurso, a jovem que sumia em meio a penumbra da tardinha. A moça, antes de sumir por completo, antes que eu curvasse o olhar, fitou-me novamente ― desta vez, ao contrario do primeiro, o olhar era demorado ― deu dois Passos e por fim sumiu por trás das dunas. No caminho de volta, amargurei um vazio que me trazia a dúvida e a saudade. Triste pela falta de costume de andar só. Enquanto caminhava, meditava: “Talvez aquele primeiro olhar da moça fosse uma promessa de voltar. Talvez aquele segundo olhar (Ah! O segundo olhar!) fosse à confirmação ou o arrependimento.” Antes de pegar no sono, em pensamentos, agradeci a minha velha tia.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Quase Beijo

São Luís, 20 de Junho de 2009


Num banquinho, do lado de fora da classe, assuntávamos Ângela e eu. Ela me contava coisas sobre o falecimento de um primo, sem me dar chances de falar-lhe o que eu queria:

“(...) Ah! Quando se morre uma pessoa querida... Eu disse uma pessoa querida? Pois bem... quando se morre uma pessoa muito querida, eu não faço nada além de chorar. E sempre têm aquelas pessoas que tentam me consolar das piores formas do mundo: uns dizem para cessar com choro e ser forte. Como ser forte numa ora dessa tão triste? Como evitar o choro se o coração, num momento desses, parece bombear, além de sangue, lágrimas? Lágrimas como se fosse sangue que entorna pelos olhos e escorrem, escorrem... Outras pessoas dizem: „meus pêsames‟. Pêsames! Pêsames! Pêsames! Esta palavrinha! Ô palavrinha! Não sei por que soa horrivelmente nos meus ouvidos; em vez de me consolar, me causa vertigens. A cada vez que uma pessoa se aproxima de mim, torço pra que não me pronuncie tal palavra, porque receio ouvi-la. Por que não simplesmente me abraçam, em vez de me trazerem lenços? Por quê? Acho que ...”

Dei pouco crédito ao que me falava Ângela, confesso. O fato de estar ao lado dela, de está fronte a fronte (quase beijo), chamava-me mais a atenção do que o assunto de gente morta (mas que belo par de olhos tinha a mulher que me dirigia à palavra). Poder eu olhar a minha imagem nos olhos dela causava-me tanta distração quanto imaginar a imagem dela nos meus. O meu olhar era fixo nela; o de Ângela, pouco podia se atar em mim, afugentava-se muito, talvez por timidez porque notasse a contemplação namorada.

Eram, mesmo na morte de outrem, instantes de prazer quando estava ao lado de Ângela, sentia um fluido frio passar nas veias a cada vez que me olhava ou tocava-me as mãos. Lembro-me que nunca vira uma mãozinha tão bonita, talvez seja exagero dos românticos exaltar as mãos das mulheres; o fato é que os olhos se fecham para qualquer defeito feminino no passar gélido e avassalador do fluido. O maior desejo era que não findasse aquele momento onde até a agonia era coisa boa. Mas como uma hora perto da mulher amada equivale, relativamente, a um minuto de trabalho árduo, o tempo se fez tempo sem dar tempo ao tempo: havia chegado à hora de nos irmos, e nada fiz, nem sequer falei-lhe palavra, como as outras vezes em que assuntávamos. Não falei nada que mandara o coração e que os exigiam hormônios. Não sei se por medo ou se por acanhamento (pobre corpo, fraco e teimoso, se faz covarde a contragosto do coração e dos hormônios); só sei que nunca eu estava preparado para a saudade porvir e levava para o fundo do quarto todo o fardo de sofrer angustias e arrependimentos.

Ângela, como de costume, depois de tanto falar, despediu-se de mim com um velho conhecido sorriso malicioso; eu, por minha vez, correspondi com um aceno de mão e demonstração dissimulada de contentamento. No entanto, em meu coração, sofria com a aflição causada pela omissão das palavras de amor que me acovardara em dizê-las.

Quando num momento desses com Ângela, além de palavras de amor, acontecem, também, em pensamentos, beijos, carícias, visões sonhadoras do futuro...

Basta um minuto depois da despedida para estarmos por demais afastados. As palavras e os beijos que acontecem em pensamentos, mais tarde, se transformam em sonho, que se transforma em objetivo, que se transforma em quase beijo (Existe quase beijo?); que se transformam em pensamentos...
Assim se repetiu, por todo ano letivo, este ciclo defeituoso.
R. R. Almeida