quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

QD

CAPíTULO 30
O Crápula

Quando o relógio contava 08h13min, acordei e ainda me doía à memória do fato do dia anterior. Planava sobre a minha mente angustiada a idéia de como estivesse raivoso Camilo. Deixei-me estar um instante na cama, a meditar. Do meu lado havia uma cama desarrumada e algumas peças de roupa penduradas na cabeceira. Levantei-me e me trasladei até o banheiro ― suspeitando a presença de Camilo ― dei uma olhada, mas ninguém estava lá. Fui até a janela e meti o rosto fora; vi o dia ensolarado e bonito, poucas nuvens pairavam pelo céu, e o clima estava bom: nem muito quente, nem demasiado frio.
Andei pelo corredor e cheguei até a cozinha, que também não tinha ninguém; olhei o bule e a cesta pão sobre a mesa, acompanhados de uma mancha de café, migalhas de pão e um copo de água que fora abandonado sem que o bebesse. Fui até a sala de estar, e o silêncio muito se parecia com o quarto e a cozinha. Estava sozinho em casa e não entendi a ausência das pessoas. Fui até a janela e fiz uma brecha na veneziana, fitei os olhos na rua, girei o olhar e notei que ali não estava a camionete. Quando fui por os olhos na rua novamente me deparei com a chegada de Camilo e os velhos; este se mostrava alegre e aqueles estavam vestidos com roupas de sair e os semblantes se assemelhavam em meiguice. È. Camilo e os velhos se queriam muito, sem dúvidas. O ronco da camionete dirigida por Camilo era estridente. Por um tempo eu fiquei a observar o primo e os velhos descerem do carro, com muitas sacolas e sorrisos. Antes que eles entrassem, pus-me na cozinha, fingi tomar café e prestava a atenção na conversação ― queria ouvir se Camilo comentava o episódio do dia passado, mas só falavam de parentes e de datas. Camilo foi quem entrou primeiro na cozinha, fitou-me e mudou abruptamente o semblante alegre para um áspero e estranho, foi tal fato que me deixou mais angustiado. Não me cumprimentou, abriu a geladeira e tomou um copo de água. Tanto me incomodei com a indiferença do primo que procurava alguma coisa na memória pra falar-lhe, qualquer coisa, só pra poder testar a intensidade da raiva que sentia. Enfim, antes que ele deixasse a cozinha, perguntei-lhe se foram fazer compras, e ele me respondeu que sim com a cabeça, deu-me as costas e enveredou-se para a sala; segui-o e, enquanto eu caminhava, hesitava, pois não me vinha na mente outro assunto que pudesse falar-lhe. Falhou-me a criatividade. Fui travado pela angustia. Camilo posicionou-se frente ao espelho que tinha na sala, perto de um quadro antigo que tinha a pintura da velha e do velho, quando jovens, que parecia recepcionar a quem chegava a sala de estar... Permita-me, leitor paciente, eu fazer um breve traço da pintura, que se não fosse a minha demência de amontoar as coisas, merecia um capítulo especial, mas vai neste mesmo: Numa moldura esculpida, que dava a cara a velhice da fotografia, a rapariga de olhos espertos, metida num vestido branco e longo que escondia as suas formas, segurava uma rosa e tinha um sorriso perceptivelmente artificial, os cabelos feito um penteado da época, um que deixava todo o cabelo para cima, como um bolo; mostrava-se com um vigor de moça sadia ― não sei se também dissimulado como o sorriso. E o rapaz, vestido num paletó preto bem passado, uma gravata listrada que apertava o pescoço, talvez por descuido ou por gosto próprio, talvez até fosse este o motivo por que estava melindrado, com o rosto agressivo, como se fosse expressão de aborrecimento causado pelo enfado de pousar tantas horas seguidas para um pintor, que não deixou de ser honesto a obra mantendo a fisionomia original do rapaz. Sei que faziam um casal bonito, apesar da malícia metrificada de um, e do excesso de seriedade do outro ... Como eu narrava antes, Camilo estava frente ao espelho, e eu parei perto da janela da sala e ainda não sabia o que assuntar. Enquanto eu hesitava, Camilo contemplava-se no espelho, amarrou o cabelo, coisa que deixou seu rosto diferente, parecia ter esticado a pele, mas ele havia feito à barba, e isso ajudou. De súbito, e talvez infeliz, perguntei-lhe do Júlio, mas ele não disse nada, ficou se admirando, retocando o penteado, apertando o nó da fita que prendia o cabelo. Fiquei esperando uma resposta e não fiz menção de insistir, limitava-me em contorcer a consciência. Depois, quando eu não mais esperava, Camilo olhou-me sério, um semblante medonho, eu também o fitei; fiz um gesto com os ombros para demonstrar dúvida, e ele dirigiu-se até a mim e me puxou pelo braço até a sacada, sentou-se e me pediu que fizesse o mesmo. Ele demorou a falar-me, passou as mãos pelo rosto e olhou pra um ponto fixo, suspirou. Enfim disse-me sobre Júlio; falou-me que agi mal em agredir o seu amigo, e vários outros pormenores que não ponho aqui porque me recuso a eternizar os sermões que me dava como se fosse meu pai, tais que me importunam a memória até esse momento em que então agito os dedos a escrever. Ele continuava a me falar sobre bons procedimentos até que eu, no cimo da impaciência, o interrompi:
― Ele estava bêbado! ― falei em voz mais alta que a dele.
― Por isso mesmo, disse abrindo os braços.
― Mas ele me ofendia.
― Porque estava bêbado, ora!
― Mas ele não estava bêbado quando nos fomos apresentados.
― Não?
― Não!
― Mas ele...
― Mas ele que nada! ― interrompi-o ― Ele me ofendeu antes de ficar alterado. Ele bem que mereceu. A propósito, é desse tipo de gente que você cultiva amizade?
― Que tipo?
― Ora, que tipo! O tipo do Júlio?
― E que tipo é o Júlio?
― Ora, Camilo, não se faça de tonto, sabes muito bem que Júlio é um crápula. Você viu, sim, o que ele me ofendera. E bem que podia fazer alguma coisa. Afinal, eu que sou seu primo, não é?
― Crápula?
― Crápula, sim! Camilo, não me tire a paciência ― disse eu levantando veemente.
― Espere, Leonel! ― Camilo me segurou pelo braço e fitou-me por algum instante silencioso, apertou os lábios um contra o outro, enrubesceu a testa e pôs no rosto confuso um olhar que vertia pesar, tanto que na expressão interrogativa que lhe era acentuada pelas sobrancelhas levantadas e as demais parte do rosto, que formavam uma obra completa do que é o arrependimento, falou-me com ternura:
― Você está certo, Leonel. Conheço Júlio desde pequeno e ele sempre foi mesmo um crápula. Mas eu não rejeitava uma parceria pra poder beber, assim começamos a ficar próximos, mas sempre nossa parceria foi conturbada por situações como essa. Devo confessar-lhe que criei um esquisito laço com o debochado, e essa foi a primeira vez que alguém me deixou sem saber como defender-lo (...) era época de grana escassa (...)
Camilo me explicou várias coisas sobre Júlio, mais do que eu podia suportar ouvir sem dissimular enfado, mais até do que devia lhe me revelar, revelou-me muita coisa sobre o... esqueça crápula, agora Pescador Delinqüente: Júlio era, além de crápula, um malfeitor; divertia-se em fazer baderna e por várias ocasiões metera Camilo também caso de vandalismo e furto, segundo Camilo confessou-me.
Júlio, em dizer popular, não era flor que se cheira.
Depois da conversa na sacada Camilo já estava todo outro, já demonstrava boa sombra e conversou comigo na sala de estar até à hora do almoço. Falávamos coisas sobre a festa de logo à noite, sobre meninas... sobre muitas outras coisas que jovens costumam conversar.


CAPÍTULO 31
Luma

Vou fazer, sem muitas voltas, um breve comentário sobre o que Camilo me contou, então com mais detalhes, sobre um relacionamento passado com Luma, a mulher mais velha que referi antes no capítulo em que apresentei o primo. Mas só porque vi nele um ar de campeão, uma feição que partia da afabilidade ao mérito num pulo, parecia até que podia vê-la ali, tanto que os olhos se paralisaram num ponto onde estava o fantasma da doce mulher. Era uma viúva de um comerciante pobre, não tinha filho porque o falecido sofria de esterilidade. Alva, bonita e vigorosa; tinha boa forma física apesar das duras tarefas de uma vida conjugal conturbada e das tarefas diárias. Tinha olhos grandes e negos; lembro-me de ele ter exaltado os cabelos, cuja negrura era de dar brilho aos olhos do mais triste entre os homens na terra. Disse-me também que isso tudo sempre foi como uma grande aventura, pois a diferença de idade, além de dar brecha à má boca e aos olhos curvos do preconceito, era ele o felizardo a dividir as noites e a cama com Luma, o que era aspiração de uma boa quantidade de homens mais velhos, que o juravam de violência.
Amava-a, sem rastros de dúvidas. Tomando para esse texto um lugar-comum, tão comum quanto às desculpas do aleivoso a mulher sofrida da prisão que é a casa e a cama: “aquele olhar dizia o que a alma sentia.”
Paro por aqui, pois que descrever a alguém que nunca teve na minha vista é demais trabalhoso, e é também um trabalho importuno. È dar pernas atrevidas a mentira induzida, visto como não podia confiar se era verdade completa a descrição amável que me referiu Camilo; só o estado emocional dele me acendeu tal idéia.


CAPÍTULO 32
O Bloco de Notas

Conversamos por um longo tempo. Camilo me falou muito da festa: mencionou as gentes, as garotas, as vestes, os fogos, os comes e bebes...
A raiva que sentia o primo, presumi, havia terminado, como não se tivesse começado. Passei o resto da tarde lendo um velho romance de cavalaria enquanto Camilo cochilava na poltrona do velho.
Eram 17h00min quando Camilo me alertou que já devia estar pronto pra sair. Ele estava frente ao espelho secando os cabelos, vestido numa calça de estampas misturadas; estava nu da cintura pra cima.

― Vai! Vai! Vai! ― apressou-me.
― Um minuto só.

Dei um pulo do sofá e enveredei-me a caminho do banheiro. Disse-lhe que não me demorava. Não me demorei.
Quando sai do banho e cheguei próximo à porta do quarto, sem que Camilo me percebesse, vi-o sentado a escrivaninha, folheando um bloquinho de notas, um que eu anotava coisas diversas, coisas de tarefas diárias, notas do jornal, e o nome de Monise por diversas folhinhas, que repetia a escrever nos dias angustiantes em que a saudade da sardenta movia os meus pensamentos e os dedos que seguravam a caneta. Percebi-o analisando calmamente o bloco e pausando justo nas folhas que tinham o nome “Monise”. De súbito e de propósito entrei e disse em voz forte, ― com supino empenho pra disfarçar o embaraço, ― que a pouco estaria pronto. Camilo reagiu com um sobressalto, os olhos estufados. E, com atrapalhação, colocou o bloco de notas de volta junto à baixela. Eu, rapidamente, desajeitado também, peguei o bloco, quis fechá-lo, mas deixei que caísse. Foi Camilo que juntou, e eu o tomei de sua mão; rapidamente abri a gavetinha da escrivaninha, meti-o dentro e fechei.
Camilo ficou ainda sentado, fez um bico e enrubesceu a testa, pondo um ar de interrogação no rosto. Dei as costas a ele.

― É... Leonel... vou te esperar na sala ― gaguejou Camilo, levantou-se e num instante deixou o quarto.

2 comentários:

Samyle Lindsay disse...

Acho muito legal o jeito que tu interage com o leitor. Muito legal mesmo. :)
E 08h13min foi bem preciso, hein. :D

Aaah, o Camilo deve conhecer a Monise, não é?
Eu acho que ele sabe alguma coisa sobre a família dela...
Porque é bem estranha, convenhamos.

Beijos! ;*

Anna Vitória disse...

Eita, perdi uma porrada de coisas!
Preciso de tempo pra me atualizar no Quase Delírio!
beijos