sábado, 20 de junho de 2009

A Arara-azul e o Louva-a-deus

Rodrigues de Almeida
São Luís, 2008, 25 de Dezembro


VOAVA ENTRE AS ÁRVORES A ARARA-AZUL, que ora e outra estacionava em galhos pra descansar. Numa dessas paradas encontrou um Louva-a-deus, imóvel, camuflado em uma folha de uma pequena amendoeira. A ave ficou a observar o estranho inseto que durava sem se mexer. Enfastiado com o silêncio que pairava entre ambos a Arara interrompeu o segredo dizendo:
“Mas que criatura mais feia é você, Louva-a-deus; deve ter vergonha de si mesmo, por isso vivi camuflado. Dessa forma, criatura magra e verde, escondida pra ninguém tomar conhecimento de sua falta de beleza. Deus devera está muito aborrecido com a natureza no instante da tua criação, ser abominável; tão feio quanto inútil. Não cogito em dizer que tu és uma presa fácil para qualquer predador, pois há um minuto estou aqui e sequer deu-me um sinal de vivacidade”
O Louva-a-deus continuou parado, exatamente como lhe encontrara a Arara, que por sua vez continuou o desdém:
“Não gostaria, feioso, de possuir belas penas azuis como as minhas? Tu não gostarias de voar bem alto para onde te desse na veneta? Não gostaria de ser venerado pelas outras espécies? Não? Quanta insignificância, pobre inseto. Não é capaz nem de se defender verbalmente. És tu, criatura, sem dúvida, o ser mais desprezível que a natureza possui.”
A Arara deu dois passos para trás, afastando-se do inseto.
“Vou-me daqui - resmungou demonstrando impaciência - e desejo nunca mais tê-lo na minha vista”
Subitamente, o louva-a-deus deu um salto e se pôs por sobre a fronte da ave, desferiu-lhe dois golpes certeiros, lesionou a cada um dos seus olhos com as serrilhas de suas patas, deixou-a completamente cega. Depois de executado o ataque o Louva-a-deus retornou a folha onde antes estava estacionado, deixou a arara a se debater de dor e a praguejar:
“Invejoso! Infeliz! Desgraçado! - gritava a ave desesperada de dor - Demônio! Você é um demônio! Arrepender-se-á de tal delito.”
O pássaro não cessava a manifestação de dor. O inseto deleitava-se da desgraça que causara. Depois de um tempo o Louva-a-deus finalmente mostrou a voz, e assim como quem debocha, interrogou a Arara dessa forma:
“E agora, dona arara? De que adianta ser tão bela se não podes a si mesmo contemplar?”
A ave parou de se agitar, hesitou, demorou um tanto pra formular uma retruca.
“Mas você esqueceu que quase todos os outros seres do mundo são dotados de olhos. Não poderei, de agora em diante, me contemplar, mas todos os outros seres, incluindo você, criatura abominável, poderão se deleitar da minha beleza. Se quiseres completar o seu prazer, inseto, terás que repetir tal delito por milhões de vezes; ou seja, cegar a cada um dos animais que existem nesse planeta, fato que nem se vivesse por dez milhões de anos conseguiria tal façanha”
O Louva-a-deus virou-se e encarou a arara, riu brevemente e mostrou-se caçoador.
“Mas não foi esse meu real objetivo, pobre Arara – disse o inseto com um breve sorriso de desprezo – queria mesmo era ver tua beleza ofuscada por dois olhos que sangram”

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Diário de Office Boy

Eu estava há uns quinze minutos na sala de estar, no apartamento de uma estranha, sentado em um sofá pouco cômodo. Ao lado, no mesmo sofá, deitada de ponta a cabeça, uma menininha de uns cinco a seis anos, inquieta, com um brinquedinho na mão, cantarolava uma musiquinha que não me recordo à letra, só a voz rouca e baixinha. Lembro também do olhar, aquele de quem fica conferindo se está ou não recebendo atenção. No outro sofá, em frente, uma Advogada gorda, muito branca, aparentava ela ter seus 37 anos, mas talvez tivesse menos se desenrugasse a face pra parecer mal encarada e áspera.

Eu estava a trabalho, no leva e traz e na espera de praxe. Sentia-me um impostor naquela casa; pude notar pela expressão de raiva da advogada, os olhos são as últimas partes do corpo a fingir hospitalidade, por isso ela não os tirava dos papéis. Ela estava com aquele mesmo ar de quem despreza os garçons, os garis, os carteiros, a mulher da lavanderia... só porque acha que tem um dinheiro a mais, quando na verdade também não passam de funcionários públicos que dormem pouco e são obrigados pelo seu próprio senso moral a mostrar boa sombra, dar bom dia e apertar a mão, esteja ou não asseadas, de quem quer que seja, goste ou não. Sem fineza, folheava documentos desordenados por sobre a mesinha de centro, junto com uma lata de refrigerante, farelos de comida e um cinzeiro transbordado. Mal olhava para os lados. Fumava incessantemente um cigarro atrás do outro e nem se importou quando a filha embrenhou-se até o armário, a três passos de si, e começou a escalá-lo perigosamente, como uma macaquinha.

Ao mesmo tempo eu fazia, com pouca paciência, um dos ofícios mais executados pelos Office Boys: esperar. Esperar a boa vontade alheia. Dividia a atenção entre a menininha alpinista de armários e aos movimentos lerdos, arrotos e o tilintar das pulseiras da advogada.

Passou-se tempo e sem que eu esperasse a mulher finalmente notou a proeza da filha:

— Desça daí, selvagem — ordenou em trovejos, de súbito, sem tirar os olhos dos papeis.

— Logo agora, mamãe. Eu estou quase... — replicou a menininha com a voz forçada porque esticava o braço pra pegar alguma coisa que não dava na minha vista de onde eu estava.

A mulher manteve a mesma expressão de dantes depois dar a ordem um tanto despreocupada, e a menininha continuou a subir mais alto.

Eu, já aflito com a posição perigosa da menina, espremia-me de preocupação a cada ruído que fazia o balançar do armário e a queda de objetos. Do sofá, já com aflição notável, cismava em pensamentos:

“Mas que espécie de mãe é esta a minha frente? Não se desassossega com a filha que escala o armário, na iminência de cair e se machucar grave? Meu Deus!”

A sapeca, lá no alto, escorregou um pé; fato que produziu um barulho que me assustou a ponto de fazer menção de levantar-me, num sobressalto involuntário de aparar a menina, caso ela caísse. A mãe desnaturada nada fez além de me olhar como se se importunasse com a minha agonia. Depois olhou par a menina, mas não demorou a dar atenção para os documentos; cingiu os lábios um contra o outro e balançou a cabeça num gesto de negação.

— Pronto! Já está tudo revisado e assinado. — Disse a mulher com voz de quem quer ver longe as visitas, levantou-se e organizou os papéis com bruteza – Entrega lá pro teu patrão e toma muito cuidado com esses negoços, ai. Caso ele encontre algum erro, ou se estiver faltando algum documento, me deixe avisada na mesma hora, certo?

Aquela dupla ordem veio com o mesmo tom de uma ameaça. Essa é uma das particularidades de pessoas incivis: sempre fingem não amar, para não desfazer a postura de autoridade; descortesia e voz áspera tanto para dar ordens quanto para pedir obséquios.

— Certo — confirmei, com os olhos no chão, receado.

Nesse mesmo instante, quando lancei um olhar por cima do ombro da mulher, a menininha estava no topo do armário e parecia bem posicionada, sentada não sei com que destreza, e examinava uma caixa que parecia ser de sapatos.

Com um magro aceno de mão me despedi da mulher sem ser correspondido. Caminhei até a porta e ela me acompanhou não por cortesia, mas para fechar a porta, somente.

Enquanto eu caminhava pra sair, lancei o derradeiro olhar para a danadinha que permanecia dependurada no alto do armário e voltei a conjeturar em pensamentos:

“Se a escalada da menina foi por objetivo de me chamar atenção, conseguiu; mas a despreocupação da mãe me chamara à atenção um tanto quanto”.

Antes que a mulher fechasse a porta, pude ouvir, lá de dentro, exclamações:

– Manhê! Olha o que eu achei! Seu peso de papel!

– Que maravilha, filhote! Que maravilha! Faz tempo que eu procurava!
R. R. Almeida

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Bosta de Pombinha

São Luís, 2009, 22 de Fevereiro



DEPOIS DE FICAR POR HORAS NA SALA DE ESTAR, lendo um livro qualquer, resolvi cessar a leitura e ir-me dormir – já me era demasiado tarde pra estar acordado – Levantei-me, estiquei o corpo, coloquei as mãos para o alto e soltei uma longa bocejada antes de subir os degraus numa lentidão comparável a de um velhinho reumático(Conto, na data deste conto, vinte e quatro anos). Cheguei ao fim deste “sacrifício” que era esse esforço da subida rotineira, dei mais quatro passos para a direita, no corredor, fiquei diante da porta do meu quarto que, não ao meu costume, estava entreaberta. Observei com cautela, pois me causara um desconforto esta situação inusitada. O quarto estava demasiado escuro, e, amedrontado, meti somente um braço para dentro; tive que tatear a parede para achar o interruptor que ligava a luz. Enfim, com a luz ligada, deslizei o resto do corpo para dentro do quarto, olhei em torno de mim, e de anormal nada vi; era o mesmo quarto de oras atrás: roupas no chão, objetos de mesa desordenados, livros mal empilhados sobre a mesa, cinzas de cigarro nos cantos, um cinzeiro sobre o criado-mudo com seu conteúdo entornado, etc.

Aliviado da tensão que o medo me causara, dei um leve suspiro. Com esforço descomedido – logo eu estava por demais cansado – despi-me da camisa de malha branca e coloquei-a por sobre o rebordo da cadeira de bambu que estava ao lado da mesa do computador. Fiz menção de despir-me da calça jeans, mas antes de fazê-lo, chamou-me a atenção à presença de uns pequenos corpos estranhos no meu quarto. Notei que ao lado da cama, havia no chão várias bolinhas do tamanho de um botão de camisa: eram pretas, brancas, cinzentas e mistas (preta-e-branca ou branca-e-cinza). Intrigado com a presença daquelas bolinhas eu me transportei para perto daqueles corpos estranhos a fim de analisá-los de perto. Agachei-me e encostei meu rosto para perto, mas nada identifiquei. Não satisfeito, toquei-as com o dedo indicador: era um trocinho macio, húmido e gelado. Aproximei o mesmo dedo para próximo às narinas e, para o meu espanto, era o que eu temia: Bosta. Gritei: “È bosta”.

Levantei-me num sobressalto, praguejando, danado de raiva, enojado e afastei para longe do rosto o dedo sujo de merda. Antes de ir-me ao banheiro para lavar a mão nojenta, olhei para cima, na mesma direção do monte de cocô, e logo avistei o malfeitor, metido numa brecha entre a quina da parede e o telhado: uma pombinha, sem dúvidas uma pombinha: a cabeça escondida na brecha e a região anal apontada para o interior do quarto, perto da cama.

“Cafajeste! Cafajeste! Cafajeste! – Trovejei tomado por cólera. “Mas que diabos tu faz aqui? Não tem outro lugar para cagar, porra?"
Pus-me a atroar perguntas para a pombinha que permanecera imóvel.
“Viu, demônio, o que fez no chão do meu quarto? – continuei aos gritos-“Tá pensando que pode defecar em qualquer lugar?”

Bastou que eu cessasse as perguntas e os xingamentos pra que a pombinha me respondesse de uma maneira a altura: mexeu-se freneticamente na região do ânus, abriu um pouco as asas e soltou uma rajada de bosta, ali no chão, ao pé de mim.

“Ta certo! Agora chega!” – Causou-me aumento da raiva tal atitude da ranzinza ave.

Deslizei-me para pegar um caderno que estava por sobre a cama, retirei-lhe uma folha e fiz uma bolinha, bem amassada. Dei dois passos para trás, mirei a ave e arremessei a bolinha contra a pombinha: Passou muito longe. Depois joguei mais umas dezessete vezes, sem êxito; sem, ao menos, fazer-lhe mover uma pena. Não bastava ter errado em todas as tentativas; na última, a bolinha ficou presa na brecha, entre o telhado e a parede, ao lado da pombinha que parecia me caçoar, imóvel. Tal situação me deixou torturado, e, vencido, preferi deixar a pobre pombinha quieta, como estava.

“Ok! Desisto! – disse eu depois de um longo suspiro de desapontamento – Você pode ficar por esta noite, mas com uma condição: mire essa bunda pra bem longe da minha cama; caso contrário irei até o quintal pegar uma vara de colher caju pra 'cutucar' esta sua bunda horrível até ferir-lhe.”

Derrotado, despi-me da calça jeans, vesti o samba-canção e preparei a cama. Dei uma derradeira olhada em torno de mim, depois mirei a pombinha e resmunguei: “Graças por não feder essas bolinhas de cocô”
apaguei a luz e me aconcheguei; adormeci.


.....................................................


Amanheceu. O relógio contava 08h30min da manhã, a luz do sol entrava pelas brechas da janela e dava um tom dourado ao ambiente. Ergui meu corpo e fiquei sentado na cama, olhei para o lugar onde estava a pombinha, então vazio; dei graças por ela ter se ido. Mas, para minha angustia, as bolinhas de cocô ainda estavam no mesmo lugar, só que em quantidade maior, formando um montinho. O primeiro juízo que me veio foi de limpar àquela "cagalhada". Fui ao banheiro, peguei um balde com água e sabão, um esfregão e luvas descartáveis. Antes de tocar a obra, ao mirar o local emporcalhado, chamaram-me a atenção quatro bolinhas de "merda" afastadas do montinho. Faziam uma fileirinha bem organizada: uma branca, uma cinzenta, uma preta e outra branca; quase a mesma distancia uma da outra. Afirmei, em pensamento, que não podia ser outra coisa senão uma mensagem da pobre ave; talvez me quisesse agradecer pela estada.