domingo, 20 de setembro de 2009

Qase Delírio (Cont)

São Luís, dia que não lembro de outubro de 2009.
No caminho, surge um certo Sr. Valdir

CAMINHAVA A PASSOS LONGOS, os braços cruzados, cabeça baixa, completamente dado ao medo. Eu estava na metade do caminho até a casa, e as palavras do velho tio soavam de quando em quando no meu ouvido, como assombros. O rosto de Monise voltou a minha mente, não como a dona dos meus pensamentos, mas como culpada pelo meu tormento.
“― Ès tu mesmo, Monise, a culpada! És tu! Tu! Tu!”, ― dizia na mente.
Metade de mim sentia medo, a outra metade sentia raiva. Insano, culpava Monise pela situação desagradável que então eu estava só porque aquele rosto sardento e jovial me fizera ficar por horas longe de casa, longe dos cuidados dos velhos tios, perto de uma febre e perto de um esporro.
Eu já passava pelas ruas das casas de muros grandes, ― já mais próximo da casa dos tios do que da cabana ― senti certo alivio, pois lá tinha boa iluminação. Mas o medo ainda era presente, os passos ainda eram rápidos, eu ainda delirava em culpar a filhinha de pescadores, com certo desdém, como causadora de toda a aflição (Arrependi-me de fazer pouco-caso da moça e rapidamente e voltei a ser o apaixonado). Num ponto alto da agonia senti tremer os lábios e murchar os olhos, e sem forças pra segurar o choro, os olhos molharam-se-me junto com a chuva; uma lamúria serena (esquisito é chorar serenamente, quando atribulado). Ao choro caminhava eu por cima das calçadas, eu já estava quase no fim da rua, quando avistei um senhor, aconchegada no vão de uma porta de uma das casas, coberto por um manto sujo e apenas o rosto a mostra. Segurei o choro pra parecer firme, desacelerei os passos e me fiz cauto olhando fixamente os movimentos do velho, que ainda não tinha me visto. O velho, quando me viu, estendeu-me a mão e resmungou algo que não entendi; eu continuei a andar fito no vulto.
― Hei, garoto! ― chamou-me o velho.
Eu, tomado de receio, aturdido pelo susto que tomara ao ouvir a voz forte e grave do espectro que se escondia no vão da porta, parei e me pus frente a frente com o mendigo.
― Você tem relógio? ― Perguntou o vulto com a voz menos volumosa e demonstrando boa sombra com um sorriso no canto da boca.
Hunrrum... Sim... Sim... ― ainda assustado, trêmulo, puxei a manga da camisa e informei-lhe a hora e fiz menção de continuar a caminhada, mas o velho me chamou a atenção outra vez.
― Espere! ― Disse enquanto saia debaixo do manto ― Por que não espera a chuva passar? Assim você me faz companhia. Olhe só pra você. Não tem medo de adoecer, garoto?
O velho não me esperou responder; com um gesto de cortesia e um sorriso sereno, puxou-me pelo braço e me pôs junto de si, no vão da porta. Estava eu no mesmo espaço de um mendigo, dividindo a penumbra, o teto, e os pingos espevitados da chuva grossa. Disse ao velho que não podia ficar porque já estava encrencado por demais pra demorar mais alguns minutos; mas ele ignorou o que eu dizia e me interrompeu apertando-me a mão e dizendo o nome ― Valdir. Disse pausadamente e nem quis saber o meu, presumi. O velho de poucos cabelos parecia não notar a minha angustia, continuava falando. Tinha os olhos sujos de remela e parte do corpo a tremer; era magro. Os pés rachados tremendamente sujos; as pernas tão magras que mal podiam sustentar o tronco, que mal podia sustentar a caveira; tinha mais orelhas do que dente. Era notável a pobreza do homem maltrapilho, mas não tirava o sorriso do rosto. Falou-me coisas sobre a cidade, sobre a época quando jovem, das duas filhas que não via há décadas, da esposa que falecera no parto da segunda filha, sobre uma casa na praia que fora engolida pelo mar, sobre a pobre infância em outra cidade, e sobre mais meia dúzia de suas desventuras que não porei aqui neste texto pra não alongar a narração.
Eu deixei-me estar com o velho tempo suficiente para ele me contar a poesia triste da sua vida dele, e eu bocejar três ou quatro vezes. Presumi, depois de um ato do velho, que não me pareceu lúcido, que ele caducava: ele olhou certo tempo à chuva e com o dedo indicador seguia alguma coisa que voava (coisa que só ele enxergava) depois se calou, fechou os olhos e disse algumas palavras com as mãos dadas.
― Agora tenho que ir, Sr. Valdir ― Disse, e deslizei-me com agilidade para fora do vão onde estava. ― A chuva não é mais aquela de agora pouco, já posso ir andando tranquilamente.
― Mas você se vai assim? Nem me disse seu nome.
― Leonel.
― Bonito nome...
O velho persistia em alongar a prosa, mas eu o interrompi.
― Sr. Valdir, tenho que ir, não posso ficar aqui nem mais um minuto.
― Por quê?
― É... Porque... Ah, Senhor, eu já lhe contei sobre minha aflição e minha encrenca!
― Certo, garoto... Quer dizer... Qual o seu nome mesmo?
― Leonel.
― Sim, Leonel, você se vai e vai me deixar de mãos vazias? Dê-me um trocado.
Eu, sensibilizado com o pedido do velho mendigo, revirei as mãos pelo bolso e com dificuldades achei algumas moedas.
― Toma, Sr. Valdir; não é muito mais acho que dá pra comprar algo pra comer.
O velho analisou as moedas e colocou-as uma por uma dentro de uma cuia que mantinha ao pé de si. Fitou-me, torceu o nariz, levantou as sobrancelhas.
― Comida não, mas fumo.
― Fumo?
― Sim. Fumo. Com esses trocados dá pra encher três vezes o cachimbo.
― Deixa de comer pra fumar?
― Não. Claro que não. È que com dinheiro pouco, compro coisa pouca, e se não dá pra encher a barriga, encho os pulmões. Meu filho, a vida é cheia de “esquisitices”, sobretudo nas dos mendigos; quando não posso dar a alegria ao estômago, dou-a aos pulmões, mas nunca deixo de fazer alguém feliz.
O velho riu brevemente e me agradeceu.
Deram-se fim as minhas dúvidas; aqueles olhos não eram lúcidos, o velho caducava; nunca ouvi um provérbio mais atroz do que este.
O papo com o velho demorou o que a chuva acalmasse. Pus-me a caminhar; deixei o velho a se cobrir novamente com o manto sujo.
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O esporro (no proximo post)
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3 comentários:

Samyle Lindsay disse...

Eu gostei do que o velho disse.
Sempre tentar fazer alguém feliz com o que tem. :)
O Leonel não reconheceu a sabedoria disso.

Aaah, quando a história terminar, tu revisa e publica :DD

Beeeijo!

Lorrayne Lindsay disse...

=D

Ia comentar a mesma coisa que a Samyle disse :p

Tá ficando muuuito bom isso!

Beijinhos :*

vieira calado disse...

Meu caro:

já não sei o que disse no tal comentário que aí não chegou.

Espero que este chegue

para manter o agradável contacto.

Abração